tag:blogger.com,1999:blog-64555975255505864182024-02-01T20:17:46.618-08:00Terceira CasaNivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.comBlogger159125tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-65018927848403314822012-03-09T18:50:00.004-08:002012-03-09T19:10:43.398-08:00Percy Adlon, I'm calling you!Por onde andará Percy Adlon, o diretor de cinema alemão que fez sucesso nos anos 80 com filmes que a gente nunca esquece? Primeiro foi <span style="font-style:italic;">Estação Doçura</span>, de 1985, em que apresentava a gordinha Marianne Sagebrecht. Também com ela veio o sucesso total de <span style="font-style:italic;">Bagdad Café</span> (1987) e a canção <span style="font-style:italic;">Calling You</span>, que saiu do filme para a eternidade dos bons sentimentos. Entre <span style="font-style:italic;">Rosalie Vai às Compras</span> (1989) e <span style="font-style:italic;">Escrito nas Estrelas</span> (1993), Adlon rodou o tocante <span style="font-style:italic;">Um Amor Diferente </span>(título pobre para o original Salmonberries), em 1991. Neste, uma espécie de <span style="font-style:italic;">Bagdad Café </span>no Alasca, k. d. lang interpreta um esquimó em busca da própria identidade, e é dela a voz na canção <span style="font-style:italic;">Barefoot</span>, tema do filme. Aí Percy Adlon sumiu, ao menos das minhas vistas. Hoje fui ouvir as duas canções, <span style="font-style:italic;">Bagdad Café</span> e <span style="font-style:italic;">Barefoot</span>, para lembrar do Adlon, e terminei em lágrimas. Choro bom, de saudade de coisas que já fez o coração bater feliz. Relembrem, ou conheçam, vocês.<br /><br /><iframe width="560" height="315" src="http://www.youtube.com/embed/pQiLsTa5jl8" frameborder="0" allowfullscreen></iframe><br /><br /><iframe width="480" height="360" src="http://www.youtube.com/embed/I4FkncWeIRs" frameborder="0" allowfullscreen></iframe>Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-28381747593896412722012-01-21T16:56:00.000-08:002012-01-21T17:06:57.395-08:00Bethânia, a outraNesta semana conferi, aqui em Porto Alegre, o show <span style="font-style:italic;">30 Anos de Bethânia</span>, com o ator Antônio Carlos Falcão. Como diz o título, faz três décadas que o Falcão mais que imita - "recebe", recria e homenageia - Maria Bethânia nos palcos gaúchos. A Bethânia do sul teria nascido em Bagé, mas, ao perceber que desde o berço era cercada por mariscos e moluscos, seguiu a pé, em peregrinação, até Santo Amaro da Purificação, em busca de suas outras raízes. Impagável também é a imitação que o Falcão faz de Chico Buarque, vestido de Bethânia. Reparem as performances nos dois vídeos abaixo, uma como Bethânia, a outra como Chico em roupas da deusa. O Falcão é genial.<br /><br /><iframe width="560" height="315" src="http://www.youtube.com/embed/vqZNx95WJA0" frameborder="0" allowfullscreen></iframe><br /><br /><iframe width="560" height="315" src="http://www.youtube.com/embed/ooHrp3kRlsw" frameborder="0" allowfullscreen></iframe>Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-55318512396089004572012-01-21T16:41:00.000-08:002012-01-21T16:55:12.209-08:00Valeu a espera<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgct4FOC65Eqwz3FxJgG458re1e6mr3ulT1kZxb1ey_HkqqeDCJoGxpxJdmcdD9vXgRlM1LjkigRcdwWUItxWs41uJA-5ZU7IlYL-jxbzD4pmmIl2oXUn_WXkQnBbTWiy_puEWApPjD7k5a/s1600/gal_recanto.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 300px; height: 300px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgct4FOC65Eqwz3FxJgG458re1e6mr3ulT1kZxb1ey_HkqqeDCJoGxpxJdmcdD9vXgRlM1LjkigRcdwWUItxWs41uJA-5ZU7IlYL-jxbzD4pmmIl2oXUn_WXkQnBbTWiy_puEWApPjD7k5a/s400/gal_recanto.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5700253238850318850" /></a><br />Um ano atrás, em janeiro de 2011, escrevi aqui no blog que uma das minhas expectativas para o ano que então se iniciava era o disco que Gal Costa estava gravando com canções de Caetano Veloso. Eu dizia no texto: "Sou fã de Gal desde sempre, e sei que faz muito que ela não nos dá um repertório à altura dos bons tempos de musa tropicalista.(...) Libriana do começo do signo, Gal tem neste ano a chance de uma bela virada na carreira, vide os trânsitos de Plutão, Urano e Júpiter para seu Sol. Estou torcendo por isso." Em dezembro, saiu Recanto, o tal disco. Sim, foi uma bela virada na carreira de Gal. Caetano foi buscar na experimentação tropicalista o tom contemporâneo do disco, que começa chocando nossos ouvidos com um instrumental de base eletrônica, segue estranho no estilo das canções, até nos devolver a arte pura do experimento. Um disco uraniano, renovador, antenado. Depois de nos tirar o chão conhecido onde viajamos com a voz de Gal, o disco nos faz voar nas possibilidades, fica melhor a cada vez que o escutamos. Expectativa atendida, valeu a espera. Salve Gal, salve Caetano!Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-53510672626543958742012-01-17T12:33:00.001-08:002012-01-17T12:52:19.851-08:00Caverna na garganta<iframe width="420" height="315" src="http://www.youtube.com/embed/Ki9xcDs9jRk" frameborder="0" allowfullscreen></iframe><br /><br />Os fãs (como eu) estão ansiosos: foi anunciado pra logo o novo disco do Leonard Cohen, o cantor canadense de 77 anos que segue apaixonando com sua voz sussurrada, quase falada e sempre gutural. Eu adoro ele, como adoro a turma dos cavernosos: Nick Cave, Tom Waits, Van Morrisson, Nasi, Celso Blues Boy... Enquanto não chega o novo Cohen, vamos curtir seu vozeirão em <span style="font-style:italic;">Dance me to the End of Love</span>. Difícíl não virar fã.Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-11721010108903956082012-01-17T12:07:00.000-08:002012-01-17T12:29:55.748-08:00Duas lágrimas<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjslZsAhzf8KpLeyEQ2XXO6FC9tSUcn814sv-H_SciIDXyt70aGdcjistRex7qH5zqfa7t-CFWWt3dkVSD-1bCma6yd-V2dtwkeC5LWntxtBxy3Vj2ngS5ekwWLW14SOWQ77QCu9g8xMkJV/s1600/piza.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 300px; height: 300px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjslZsAhzf8KpLeyEQ2XXO6FC9tSUcn814sv-H_SciIDXyt70aGdcjistRex7qH5zqfa7t-CFWWt3dkVSD-1bCma6yd-V2dtwkeC5LWntxtBxy3Vj2ngS5ekwWLW14SOWQ77QCu9g8xMkJV/s400/piza.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5698698042945712082" /></a><br />O jornalista Daniel Piza costumava render homenagens, em seu blog, a personalidades relevantes recentemente mortas, sempre em posts com o título "Uma lágrima para ..." Meu primeiro post neste ano, aqui, vai como uma lágrima para Daniel Piza, morto aos 41 anos, na véspera do ano novo, vítima de um AVC. Senti muitíssimo. Eu era assíduo leitor de suas opiniões sempre bem fundamentadas no Estadão, fã de sua alta cultura e erudição, que não se encastelava no discurso difícil e pernóstico, e comunicava muito. Li sua biografia de Machado de Assis e gostei demais. Vai fazer falta, o Piza, nesse universo da imprensa fútil, voltada a celebridades efêmeras e mesquinharias. Fica a inspiração de um grande cara, que gostava, como eu gosto, de história natural. Receba de volta sua grande luz, Piza. <br /><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg84RH67FwIPJmRpkfsrhxqGdWrWP0Nsr4YmRC2paS3PPHOWY3PGDHEoM_ndrxjfO5FBhIXncW6grKoUWYdNo_q3TmwPGD-noqIozdw1NRHZdMOOtfstTCHoui7vFb2Ycme66CmnIh20Ka4/s1600/campos.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 400px; height: 266px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg84RH67FwIPJmRpkfsrhxqGdWrWP0Nsr4YmRC2paS3PPHOWY3PGDHEoM_ndrxjfO5FBhIXncW6grKoUWYdNo_q3TmwPGD-noqIozdw1NRHZdMOOtfstTCHoui7vFb2Ycme66CmnIh20Ka4/s400/campos.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5698699669299762962" /></a><br />E a ceifeira implacável fez outra das suas agora neste mês. Levou também o escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós, aos 66 anos. Meses atrás, publiquei aqui uma crônica sobre ele, depois de ser arrebatado pelo livro <span style="font-style:italic;">Vermelho Amargo</span>. Por causa desse texto, uma amiga, também fã do Queirós, me presenteou com o igualmente maravilhoso <span style="font-style:italic;">O Olho de Vidro de Meu Avô</span>. Mais prosa poética confessional, mais de uma visão tocante da vida. Para consolo, o Bartolomeu publicou muitos livros, há muito dele para eu descobrir, nesse legado que realmente importa: o das idéias e grandes feitos em benefício da humanidade.Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-65293522633855164342011-12-06T16:14:00.000-08:002011-12-06T16:22:54.230-08:00Gramática de dezembro<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEggpyITU3Uj2KSZNH_6_cHZURsbdkz13uSQ5V8qP6ZgYUf3J5ZDfmaBiDyiEmy1taNgaIoQM8RYklRBpc0pHQ1Aoe-ry78e_noQ2WLgLzb9iwFceOApDJwTEjJqXJIalLP-RcjlAvgUPR_7/s1600/arvore+2.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 240px; height: 249px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEggpyITU3Uj2KSZNH_6_cHZURsbdkz13uSQ5V8qP6ZgYUf3J5ZDfmaBiDyiEmy1taNgaIoQM8RYklRBpc0pHQ1Aoe-ry78e_noQ2WLgLzb9iwFceOApDJwTEjJqXJIalLP-RcjlAvgUPR_7/s400/arvore+2.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5683175284069668722" /></a><br />Nivaldo Pereira<br /><br />Crônica publicada no Pioneiro, 07/12/2007<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Substantivos</span>: compra, débito, pagamento, crédito, oferta, caixa, presente, fita, fila, pacote, atendente, algodão, isopor, vitrine, trânsito, gente, gente, gente, irritação, buzina, calor, camiseta, bermuda, amigo-oculto, reserva, pizzaria, espera, confraternização, cerveja, alegria, mensagem, vazio, cartão, euforia, depressão, feriadão, festa, quantidade, falta, pinheiro, luz, coração, barriga, mesa, ceia, peru, fruta, vela, família, amor, solidão, lembrança, inventário, promessa, esperança, negação, expectativa, noite, espumante, taça, abraço, beijo, ressaca, perdão, Deus, fim, começo.<br /> <br /><span style="font-weight:bold;">Verbos</span>: querer, andar, olhar, perguntar, cansar, comprar, gastar, calcular, telefonar, desistir, somar, oferecer, retribuir, arrumar, cozinhar, preparar, esperar, sentir, chorar, rir, perdoar, embriagar, ferir, esquecer, celebrar, rezar, desejar, sonhar, brindar, dividir, prometer, parar, seguir, ser, ter, dormir, recomeçar.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Numerais</span>: doze, décimo terceiro, vinte, meio, vinte e cinco, dobro, milhares, milhões, bilhões, trinta e um, dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Pronomes</span>: eu, comigo, tu, contigo, nós, conosco, eles, deles, isto, meu, pouco, aquilo, bastante, vários, demais, alguém, quem, ninguém, quanto, qual, aquele, nenhum, minha, nada.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Artigos</span>: o, um, a, uma, os, uns, as, umas.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Adjetivos</span>: feliz, novo, bom, melhor, vermelho, verde, triangular, celeste, colorido, caro, bonito, barato, singelo, iluminado, lindo, dourado, ótimo, verde, cristão, alegre, mau, cheio, péssimo, delicioso, doce, salgado, quente, melhor, gelado. <br /><br /><span style="font-weight:bold;">Advérbios</span>: aqui, bem, lá, mal, talvez, menos, possivelmente, sim, hoje, muito, amanhã, demais, sempre, rapidamente, nunca, lentamente, como?, onde?, ainda, não, adiante, depressa, longe, devagar, perto, generosamente, bastante, certamente, quando?, quando?, quando? <br /><br /><span style="font-weight:bold;">Preposições</span>: até, sem, após, exceto, durante, com, mediante, sob, contra, sobre, conforme.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Conjunções</span>: que, porque, mas, quando, pois, ou, porém, nem, contudo, portanto, assim.<br /><br /><span style="font-weight:bold;">Interjeições</span>: xô!, alô!, olá!, hum!, oba!, grato!, viva!, tomara!, queira Deus!, ufa!.Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-45670422011545167622011-12-03T17:19:00.001-08:002011-12-03T17:21:50.172-08:00Céu de Sagitário<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZYUULmBa1IYC1TbGfM4fh1Vu7fzq-YaPSIhebZzdYFVBJVfZFCQhOID1_cg88g4kMlpICWSWMY6y-ehlCR-XuiHReeAe3DOeFjE83HHH5OMxu29aaQzGKUhB_XQjQlHudIGRQVk-vJ2yc/s1600/sagitario.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 400px; height: 320px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZYUULmBa1IYC1TbGfM4fh1Vu7fzq-YaPSIhebZzdYFVBJVfZFCQhOID1_cg88g4kMlpICWSWMY6y-ehlCR-XuiHReeAe3DOeFjE83HHH5OMxu29aaQzGKUhB_XQjQlHudIGRQVk-vJ2yc/s400/sagitario.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5682077166458119298" /></a><br />Nivaldo Pereira<br /><br />Texto publicado no jornal Pioneiro, 04/12/2009<br /><br />Em Sagitário, a gente quer sentido. Quer saber das tais coisas entre céus e terra, saber de mistérios e vãs filosofias. Em Sagitário, a gente quer achar um lugar para Deus, se na sala, no quarto, no sótão iluminado ou no porão sombrio. Sob o céu deste Sagitário, eu vi dois espetáculos teatrais, dois monólogos de mulheres sobre textos de duas escritoras. Ambas sagitarianas: Adélia Prado e Clarice Lispector. Ambas falam de Deus. Coincidência? Sob um céu de Sagitário, não há coincidências.<br />Em <span style="font-style:italic;">Adélias, Marias, Franciscas...</span>, a atriz e bailarina Maria Falkenbach viajou na obra da mineira Adélia Prado, divina Adélia de Divinópolis. O sotaque brejeiro definiu no palco uma mulher entre o cotidiano e a fé em Deus. Um Deus refletido no feijão diário e na roupa do varal, no desejo sensual e no sonho de amor. Um Deus que soma e subtrai. Adélia escreveu: “De vez em quando Deus me tira a poesia. / Olho pedra, vejo pedra mesmo.” <br />No Sagitário de Adélia, a flecha para Deus desenha no espaço o mapa do humano. Diante da goiaba madura, o mistério se revela: “o Reino é dentro de nós, / Deus nos habita. / Não há como escapar à fome da alegria!" E há tantas fomes nesse corpo, obra de Deus: “Meu coração bate desamparado / onde minhas pernas se juntam. / É tão bom existir!” <br />E sob Sagitário eu vi também Beth Goulart em <span style="font-style:italic;">Simplesmente eu, Clarice Lispector</span>. Em cena, a figura estranha e fascinante de Clarice. A estranheza e o fascínio da vida, carecendo de significado. Que surge ameaçador, no clarão repentino de um cego mascando chicletes; ou que desafia a ordem anterior, ante um rato morto sob o sol. É Deus nas epifanias de toda hora. <br />Em Clarice, Deus é falta: ”Estou ferindo muita gente. E Deus tem que vir a mim, já que eu não tenho ido a Ele.” Ou a aceitação do escuro interior: “enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado e o jogo da minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.”<br />Adélia, Clarice, Deus. Sob esse céu sagitariano, atiro minhas próprias flechas ao Deus que me espelha. Dentro, o coração apenas bate. Mistério da vida.Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-43127944741929501742011-12-02T12:10:00.000-08:002011-12-02T12:21:05.477-08:00Já volto!Tadim do meu bloguim, tão abandonadim. Ando sem tempo para ele, escrevendo os textos para o livro J<span style="font-style:italic;">eitos de Ser Brasil</span>, um apanhado de impressões sobre o nosso país, resultado de viagens pelas cinco regiões com o artista plástico Antônio Giacomin. Em abril, o livro deve ser lançado pela Editora Belas Letras, com meus textos em tom de crônicas e as aquarelas e desenhos do Giacomin, mais a diagramação especial da Lofty Design. Está ficando bonito, aguardem. Enquanto escrevo, ando ouvindo muita coisa, de Elis Regina a Maria Callas, de Uakti a Sá & Guarabira. Nos últimos dias, o argentino León Gieco, de quem posto aqui um vídeo com a saudosa Mercedes Sosa, em Carito, umas das músicas do Gieco de que mais gosto. Hasta luego.<br /><br /><br /><iframe width="420" height="315" src="http://www.youtube.com/embed/5JZubqMBHco" frameborder="0" allowfullscreen></iframe>Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-758750651125158552011-11-07T10:35:00.000-08:002011-11-07T10:43:35.533-08:00Os vivos e os mortos<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEikLCsVAMhyphenhyphenPy4YAx5aeNB6UgpjPoFYZ2zeCR5oKIOEK0PqWDyqV0VvTSXaDbn3lzqPF6C28LuoGEO9mrfA8PiIi_OjWXvm8abyxJBJ7YeQEOKGQD_YOxdMDWZZilhMsWabU7LIVpGqTjxM/s1600/lapide.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 377px; height: 400px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEikLCsVAMhyphenhyphenPy4YAx5aeNB6UgpjPoFYZ2zeCR5oKIOEK0PqWDyqV0VvTSXaDbn3lzqPF6C28LuoGEO9mrfA8PiIi_OjWXvm8abyxJBJ7YeQEOKGQD_YOxdMDWZZilhMsWabU7LIVpGqTjxM/s400/lapide.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5672326405931615186" /></a><br />Nivaldo Pereira<br /><br />Crônica publicada no Pioneiro, 04/11/2011<br /><br />Brisa fria, manhã de Finados. Uns dormem, na paz do feriado; outros, despertos, pensam nos que dormem em paz nos campos santos. O dia dos mortos é também dia dos mortos de saudades. O vento da primavera quer saber a inverno, como se plasmasse no ar a frieza de lápides e ausências. Quer, esse vento, retornar à estação passada, conter o verão de exuberâncias incabíveis quando lutos se arrastam no choro das perdas. Mas a vida empurra, a vida puxa pelos cabelos, a vida é feita de seguir em frente. E o vento cede, se deixa aquecer de calores suaves, feito lágrima que secasse e riso que se anunciasse. Oh, brisa fria, então não sabes que gelos não podem ser eternos? <br /><br />O sol, potro fogoso, sobe no caminho azul do céu, firma-se em calor e vontade. A luz irradiante é mais que convite, é ordem para ações e direções. Frear tal ímpeto soa a negação da natureza. E o natural não é a negação da morte, mas a afirmação da vida pela morte. Há que se pensar bem na vida quando a morte é tão certa. Um dia para os mortos, todos os dias para os vivos. Quem não vive tem medo da morte: palavras do Itamar Assumpção, poeta morto. Morte dói, mas sem ela a vida fica sem limite, sem propósito, sem urgência. Por isso o sol decreta: levanta e anda! Respira e vive!<br /><br />A noite, sem sol, espelha no firmamento luzeiros vivos e lembranças de estrelas. Sim: lembranças, pois que tantas delas nem mais existem, reduzidas à viagem da antiga luz pelo espaço. Meras memórias, mas tão reais! Ocultas pela proximidade urgente desse sol que arrebenta o dia, as estrelas em memória continuam a rodar, lá atrás, em seus lugares no desenho ancestral das constelações. Presentes e invisíveis, qual manto mágico a tudo envolver. Feito nossos mortos: brilhos de nossa memória, limites do que fomos e do que nos resta ser.<br /><br />Eu abro a janela na manhã de Finados. A brisa fria dói em saudades dos meus mortos. Mas esses mortos, bem sei, me querem vivo e feliz. E nesse propósito eu sigo, montado no potro solar. Quem não vive tem medo da morte: sempre é bom ouvir o som do meu saudoso Itamar. Negra melodia, estrela, estrela.Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-35320844047762709622011-11-07T10:33:00.000-08:002011-11-07T10:42:47.867-08:00A mulher e as pitangasNivaldo Pereira<br /><br />Crônica publicada no Pioneiro, 28/10/2011<br /><br />São três pitangueiras carregadinhas. As frutas, em amarelo e vermelho, poucas ainda verdes, se oferecem a quem as quiser. Na névoa rala que evanesce a paisagem do cedo matinal, uma mulher estica o braço, colhe as pitangas mais graúdas. Repete o ato na árvore seguinte, e na outra. Sai com a mão cheia. Tudo até natural, numa manhã de outubro, safra da fruta silvestre. A nota dissonante? O fato de as pitangueiras estarem numa calçada do centro de Caxias do Sul, subida da Rua Garibaldi, na quadra entre a Pinheiro e a Júlio. <br /><br />A mulher, uma transeunte nos seus que-fazeres, põe na bolsa as pitangas, sobe a rua. Eu viro o pescoço, viro a esquina. O cruzamento de vias já é um ruído absoluto, de fúria e velocidade àquela hora. Começa uma terça-feira de urgências, numa cidade que não gosta de perder tempo. Meu olhar, já noutra direção, registra uma sintonia entre as cores das frutinhas – vermelho, amarelo, verde – e as cores do semáforo. Um anjo vagabundo, desses que vadiam nas esquinas, pisca para mim, como a dizer sem palavras: “Achou assunto para a crônica, hein?” Quis saber a que assunto ele se referia, mas, anjo vadio, evapora-se na névoa.<br /> <br />O dia passou, mas ficou a imagem da mulher que colheu pitangas, ficaram as cores do semáforo, ficou a pressa das ruas. Agora, na hora de processar isso tudo, um olhar em verde, de leituras aceleradas e imediatistas, enxerga na mulher das pitangas apenas a esperteza de quem achou frutas dando sopa, de graça, e juntou quantas conseguiu, qual troféu de sorte. Um olhar em amarelo já pede calma na avaliação. Então não havia ar de surpresa no gesto da mulher? A quem se destinaria as frutas colhidas? Talvez seja uma festa ela entregar a alguém o punhado de pitangas e a origem: colhidas bem ali, na calçada...<br /><br />Por fim, surge um olhar em vermelho, sempre maduro. A mulher parou, interrompeu suas urgências para uma ação tão natural, até inocente. Parei eu, por instantes, para mirar essa cena rara. Vagares na manhã de uma cidade de pressas, cidade que nunca pára. Cidade que detesta sinais vermelhos. <br /><br />Ei, anjo vadio, então era esse o tema?Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-72775896599540420602011-10-23T13:18:00.001-07:002011-10-23T13:21:39.571-07:00O funk do AdnetOlha aí o vídeo engraçadíssimo do Marcelo Adnet, Gaiola das Cabeçudas. Curtam.<br /><br /><iframe width="560" height="315" src="http://www.youtube.com/embed/kcHHQ2RV4nQ" frameborder="0" allowfullscreen></iframe>Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-20761793729793175092011-10-23T13:14:00.000-07:002011-10-23T13:17:26.612-07:00Malícia Popular Brasileira<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgt2R02P87d0_ieOMcAKrK0kOxfROq1XB-ywIe5WbGDihzdvadOALplj-eiSR43An6_D4M3GSGaEaGYyi-G3TVt-OlX4A54uaVWl6ScyU-AMQgWRm7wPe9q3GmdlU2ByiR9tUxBVMEEHona/s1600/popozudas3.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 400px; height: 267px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgt2R02P87d0_ieOMcAKrK0kOxfROq1XB-ywIe5WbGDihzdvadOALplj-eiSR43An6_D4M3GSGaEaGYyi-G3TVt-OlX4A54uaVWl6ScyU-AMQgWRm7wPe9q3GmdlU2ByiR9tUxBVMEEHona/s400/popozudas3.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5666784158682171570" /></a><br />Nivaldo Pereira<br /><br />Crônica publicada no Pioneiro, 21/10/2011<br /><br />Chorei de rir com o vídeo <em>Gaiola das Cabeçudas</em>, do humorista Marcelo Adnet, no youtube. Travestido de popozuda, Adnet manda ver um funk carioca, no ritmo e na coreografia, com o elemento inesperado que produz o humor: a letra cheia de referências “cabeças”, de Beethoven a Jung, de Foucault a Kant. Alta cultura onde se esperava pornografia: na há como não rir. Evoco esse vídeo para refletir sobre a queixa geral acerca do baixo nível da cultura de massa, em que o funk carioca, com seu erotismo explícito, é o demônio da vez. Tempos atrás, a música popular não era tão sacana. Ou era? <br /><br />No delicioso livro <em>História Sexual da MPB</em>, o carioca Rodrigo Faour mostra que a tal baixaria não é marca dos tempos modernos, mas sim um traço cultural do brasileiro. Nosso povo se gaba de sua sensualidade tropical e de sua imensa libido. Também se reconhece na manha com que burla leis e não leva nada muito a sério. “A nossa música também reflete essa nossa ‘indisciplina’ em relação ao padrão moral de comportamento reinante em cada tempo de nossa história”, escreve Faour. <br /><br />Ou seja, uma ala mais divertida e malandra da MPB, que brincava com os duplos sentidos às raias da pornografia, sempre conviveu com uma produção tida como séria e de bom gosto. Lógico que, em tempos de liberação sexual, como agora, as canções e danças vão ilustrar também esse estágio. Enfim, nada de novo sob o sol do Brasil, nem mesmo a grita dos mais recatados.<br /><br />Faour prova sua tese citando canções antigas, e de sucesso, do começo do século XX, como <em>A Boceta de Rapé </em>(1907), <em>A Pombinha da Lulu </em>(1912) e <em>Vai Entrando </em>(1903), entre tantas. A malícia se espraia ainda mais com as marchinhas carnavalescas, vide trechos como “Esse ano eu sair de diabo / Só falta o rabo! Só falta o rabo!” e “É dos carecas que elas gostam mais”. A sem-vergonhice segue sempre, até Genival Lacerda ficar de olho na butique dela e inaugurar um gênero.<br /><br />Não tem jeito. Barroco que sou, depois de ouvir uma ária de Bach, chego a precisar da voz da Clemilda mandando o delegado prender o Tadeu. Quem mandou nascer brasileiro e se orgulhar disso?Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-17292880373026504312011-10-23T13:08:00.000-07:002011-11-07T10:44:45.975-08:00Sopa de letrinhas como aperitivo<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhM6e2piC63uO4cJFP-DMKKMX5uN4AOEG9nsc5dOFH1kwKlD7OHAE08Gj6qv1xNFa_Z38uWWb3vwLHhZirfYnD-vhz4cWa5_myWJnEOzGfLRaL1mbiOP0RHWgiQ45c3FvCU3lb4MqY88c6p/s1600/livros.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 400px; height: 361px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhM6e2piC63uO4cJFP-DMKKMX5uN4AOEG9nsc5dOFH1kwKlD7OHAE08Gj6qv1xNFa_Z38uWWb3vwLHhZirfYnD-vhz4cWa5_myWJnEOzGfLRaL1mbiOP0RHWgiQ45c3FvCU3lb4MqY88c6p/s400/livros.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5666783150322458450" /></a><br />Nivaldo Pereira<br /><br />Crônica publicada no Pioneiro, 14/10/2011<br /><br />“Picasso pediu a Gertrude [Stein], em 1907, que posasse para ele. Gertrude aceitou. Passou 54 dias posando e, quando o retrato ficou pronto, Gertrude se queixou: ‘Pablo, esse retrato não se parece comigo’. Ele respondeu: ‘Não se preocupe. Um dia, você é que se parecerá com ele.’” <em>O leitor apaixonado</em>, de Ruy Castro, página 195.<br /><br />“E Marilyn [Monroe] deixou de ser mulher. Era a folhinha. Nunca perdeu a obsessão da própria nudez. Quando pensou em se matar, teve que se despir para morrer. Morreu nua, morreu folhinha.” A cabra vadia, de Nelson Rodrigues, página 293.<br /><br /> “Depois de muito voar por muitas terras e reinos, avistou o pé de árvore na frente de um grande palácio; o Vento logo de longe foi dizendo: ‘É ali; agarre-se nos galhos, senão eu a levo para o fim do mundo.’ Assim a moça fez; agarrou-se num galho de árvore, e o Vento seguiu.” <em>Contos populares do Brasil</em>, de Sílvio Romero, página 7.<br /><br />“Há uma outra maravilha [no país de Cocanha]: a Fonte da Juventude que rejuvenesce homens e mulheres. Qualquer homem, por mais velho e pálido que seja, qualquer mulher, por mais velha que pareça com seus cabelos brancos ou grisalhos, retornará à idade de trinta anos (é a suposta idade do começo da pregação de Cristo).” <em>Heróis e maravilhas da Idade Média</em>, de Jacques Le Goff, página 150.<br /><br />“Meu pai era pedreiro. Por causa da neve não podia trabalhar. Sua argamassa congelava antes de aderir, e seus dedos eram como varetas desajeitadas. Mas era um homem de atividade incessante, tinha de fazer alguma coisa, e o lento arrastar dos dias o exasperava e fazia dele um homem perigoso dentro de casa.” <em>O vinho da juventude</em>, de John Fante, página 23.<br /><br />“Seu remédio era o canto. Recostada na cabeceira da cama, debaixo do crucifixo, a mãe exorcizava a dor. E as canções de despedidas, de amores perdidos, de momentos partidos, preenchiam o silêncio. E mudos, com os pensamentos encharcados de perguntas, os filhos escutavam os gemidos em forma de música e aprendiam a cantar.” <em>Vermelho amargo</em>, de Bartolomeu Campos de Queirós, página 50.<br /><br />Querem mais? Sirvam-se da refeição completa nos livros!Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-66621481447937246132011-10-11T17:17:00.000-07:002011-10-11T17:22:11.505-07:00Letras roubadas<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjyVVwVyn17ryUBJwhBRvcBUUv8CbXNpjBOAWjYeAMU7SMSptJalBMrIDHrZ21GXh_DiZOUGqIrpY2fZdgelg0FYIYBHYWQl7f3rETfay2T8LfO4AycouX22mtLKu8ir4AMWis7w3CmL1Wt/s1600/letras.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 400px; height: 250px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjyVVwVyn17ryUBJwhBRvcBUUv8CbXNpjBOAWjYeAMU7SMSptJalBMrIDHrZ21GXh_DiZOUGqIrpY2fZdgelg0FYIYBHYWQl7f3rETfay2T8LfO4AycouX22mtLKu8ir4AMWis7w3CmL1Wt/s400/letras.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5662394131891906274" /></a><br />Nivaldo Pereira<br /><br />Crônica publicada no Pioneiro, 07/10/2011<br /><br />Na cama, enquanto repartia o tempo antes de dormir entre três livros, devorando um pouco de cada, constatei que sou um milionário no quesito direito à leitura. Cheguei a isso evocando um antigo dito da minha mãe: “Nasci nua e estou vestida”. Ela dizia assim quando precisava reafirmar que já era vitoriosa, mesmo que a vida seguisse exigindo coisas e coisas. Pois na lição da mãe, embora eu tenha tantos quereres, sou realizado porque posso ler os livros que anseio, se for lembrar um tempo em que ler era um desejo difícil de ser saciado.<br /><br />Não havia livros em casa na minha fase mais ávida de leitura, a adolescência. Muitos irmãos, muitos gastos, não havia dinheiro para livros que não fossem os didáticos obrigatórios da escola. Era quando eu olhava com inveja as estantes cheias nas casas de colegas. Lia o que podia pedir emprestado, e só. Mas era pouco, muito pouco para minha fome de letras e mundos imaginados. Foi quando caí na clandestinidade. Passei a roubar leituras.<br /><br />Com certa regularidade, ao voltar da escola, entrava na maior livraria do bairro, pegava na prateleira o livro desejado e desatava a lê-lo, ali mesmo, em pé. Cuidava de fechar o volume e devolvê-lo ao lugar quando algum funcionário se aproximava, num disfarce fajuto de quem estava a procurar algum livro para comprar. Li assim uns dois títulos da coleção de Monteiro Lobato, capítulos a prestação, um olho na página, outro na gente da loja.<br /><br />A farra acabou quando certa tarde o dono da livraria me desmascarou. Disse, com tom autoritário: “Você está sempre por aqui, lendo tudo e não comprando nada. Se não for pra comprar, não apareça nunca mais.” Pedi desculpas, saí da loja humilhadíssimo. <br /><br />Essa vergonha, contudo, não durou muito, pois o vício da leitura me levou a repetir o crime em outra livraria. Vício faz isso, faz a gente burlar a lei. Pena que a outra livrara fosse pobre em literatura... <br /><br />Naquele tempo, meu maior sonho era poder ler tudo o que quisesse. Tantos anos depois, com estantes abarrotadas e criado-mudo com livros empilhados, agradeço aos céus pela graça alcançada. Sou ou não sou um cara rico?Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-26684448343357887122011-10-03T12:16:00.000-07:002011-10-03T12:20:32.229-07:00O mistério das moedas<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpaWjlE1HQgPf6wwqufuBPMAdGTtflbS8WMgmX6TbAfRBXqcr72MmRbiULd7nsRhFeOOCCEhBnh-oRESNnU6qpgVJXbV_wCa_G83mEJ8icWv0Aly5HPUCfDwhlSaANAKQJMoa29L1Vsuqb/s1600/moeda.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 400px; height: 344px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpaWjlE1HQgPf6wwqufuBPMAdGTtflbS8WMgmX6TbAfRBXqcr72MmRbiULd7nsRhFeOOCCEhBnh-oRESNnU6qpgVJXbV_wCa_G83mEJ8icWv0Aly5HPUCfDwhlSaANAKQJMoa29L1Vsuqb/s400/moeda.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5659347685894022802" /></a><br />Nivaldo Pereira<br /><br />Crônica publicada no Pioneiro, 30/09/2011<br /><br />Começo esta história pela conclusão que tirei dela: a gente nunca sabe direito quem é o outro, e esse mistério estimula a criação de explicações que não passam de extensões do nosso próprio mundo. Pareceu complicado? Vamos à história, então. <br /><br />O prédio vizinho ao meu, com um poço de luz separando-os, termina dois andares abaixo das minhas janelas, mas há no terraço dele um anexo que se eleva por mais um andar. Talvez seja uma casa de máquinas, esse bloco logo abaixo do meu vizinho da direita.<br /><br />Anos atrás, dia após dia, enquanto olhava a paisagem da tarde, eu notava o aparecimento de moedas na laje do bloco retangular. As moedas, de cinqüenta centavos e um real, faiscavam ao sol poente, e eu ficava intrigado sobre a origem delas. Alguma criança teria atirado-as ali? E por que continuava a atirá-las seguidamente? Um adulto? Quem seria esse vizinho? Seria por promessa? Oferenda aos entes das ruas?<br /><br />Quase nunca aparece gente no terraço vizinho, e nunca vi ninguém subir ao anexo, de modo que as moedas foram aumentando e provavelmente despertando a curiosidade de outros moradores do meu prédio. Se o autor não fosse o louco literal que atira dinheiro fora, certamente seria um crente em simpatias e afins. Tipo: jogue uma moeda de um real no telhado vizinho, que sua conta bancária engorda!<br /><br />Certa feita, uma amiga veio visitar-me e, vendo aquela grana brilhar na laje, deu-se ao trabalho de contá-la e concluiu que não ia demorar a haver alguma caça ao tesouro. Dito e feito. Um tempo depois, notei um zunzunzum lá fora e dei de cara com uma cena insólita. Do apartamento à direita do meu, desocupado e em reformas, dois pedreiros “pescavam” o dinheiro. Aliás, vou retirar as aspas, pois eles pescavam mesmo as moedas, com uma extensa vara de pescar e um ímã na ponta. Tique, tique, tique, tique: as moedas foram se grudando ao ímã. Todas.<br /><br />Os dois viram que eu os observava e riam, quem sabe com a sensação de “fomos mais espertos que você”. Aí a laje voltou a ser mero teto. O atirador de moedas sumiu ou parou com isso. E eu fiquei com mais um mistério sobre a vida em sociedade.Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-40979249759484308772011-09-25T16:12:00.000-07:002011-09-25T16:16:04.319-07:00Porque hoje é primavera<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhirOHLgQP_Z4zS7ac7o6Xpt4dKtEJUxroauMLet0aobX4U59QIs1TCBTD_8jKBntf1R5rBPlEadN550CYhCJwdDAx-E-MXS-kWNDD9hLJddfFXnDNJXamILN4GPJAcCZvvC9bRqCfj0PUe/s1600/primavera.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 400px; height: 300px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhirOHLgQP_Z4zS7ac7o6Xpt4dKtEJUxroauMLet0aobX4U59QIs1TCBTD_8jKBntf1R5rBPlEadN550CYhCJwdDAx-E-MXS-kWNDD9hLJddfFXnDNJXamILN4GPJAcCZvvC9bRqCfj0PUe/s400/primavera.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5656439899076860962" /></a><br />Nivaldo Pereira<br /><br />Crônica publicada no Pioneiro, 23/09/2011<br /><br />Extra, extra!: a Terra, nave da nossa viagem pelo céu, logo na manhãzinha desta sexta-feira, 23 de setembro de 2011, às 6h05min, chegou ao ponto em que permite ao Sol irradiar com igual intensidade sua luz para o globo inteiro. Como ficar imune a esse decreto cósmico de partilha e justiça?<br /><br />O inverno no Sul se despede. O calor vai chegando manso, fecundo, despertando toda a natureza da fase de recolhimento. A passarada reaparece em cantorias incessantes, machos e fêmeas vibram alegremente no cortejo de acasalamento. Trinados melodiosos são relógios da vida. Como ficar surdo a esse encantado despertador?<br /><br />As árvores que se desfolharam no frio respondem ao clima de ressurreição numa brotação de verdes espetaculares. Galhos e troncos vestem-se dos tons que a poesia dos homens costumou associar à esperança. Ainda que meio cegos pelo cinza das cidades, como não deixar que a imaginação busque motivos para surpresas libertadoras?<br /><br />Do mais humilde arbusto à imponente araucária, do musgo da grota ao capim que faz cocurutos nas ondulações dos morros, dos cravos silvestres às roseiras de estufas, de tudo exala odores inebriantes, aromas de desejos de viver, perfumes do existir. Como não abrir o peito e aumentar a inspiração com esse ar regenerador?<br /><br />A luminosidade, num crescente, irradia o calor que inutiliza carapaças e casulos; casacos e capas voltam para o recôndito dos armários; a pele quer se sentir nova no arrepio de brisas e quenturas, o corpo todo se estica, como se clamando por também ser tocado, qual instrumento, pela regência solar. Como não espichar também o raio de todos os nossos alcances?<br /><br />Por entre beijos de abelhas no néctar, bicadas sugadoras de colibris, ciscar de aves em chão de insetos, ansiar de bichos fora das tocas, tudo parece querer comida, querer cor e frescor. Como não saciar essas e outras fomes do bicho humano?<br /><br />E a primavera neste ano se inicia junto com a luz do dia, em clima potente de nascer do Sol. Como negar esse duplo impulso de recomeço, se a vida toda é um só empurrão para fora, para além, para adiante?<br /><br />Ei, vocês vão ficar aí, parados?Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-11566008398374750952011-09-16T06:46:00.000-07:002011-09-16T06:49:13.922-07:00Até o próximo parto<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhEWlvRr-HV8A2hizA1d69yhN_iI8OR26jQakHxSTjzr3C1Pk2nhiCTDD-zafx13W1ci3sRl5wVq20uyPMoFM4yabxo97dnoSb4cEnGTzDVPy4OyU7WEAQ2hn31Vdj4Lne6_nzeaI-f_v-0/s1600/anjo3.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 400px; height: 300px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhEWlvRr-HV8A2hizA1d69yhN_iI8OR26jQakHxSTjzr3C1Pk2nhiCTDD-zafx13W1ci3sRl5wVq20uyPMoFM4yabxo97dnoSb4cEnGTzDVPy4OyU7WEAQ2hn31Vdj4Lne6_nzeaI-f_v-0/s400/anjo3.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5652953823114686130" /></a><br />Nivaldo Pereira<br /><br />Crônica publicada no Pioneiro, 16/11/2011<br /><br />No jornal Pioneiro, já escrevi quase 600 crônicas, em mais de 11 anos. É texto a dar com pau. Esse inventário, à guisa de making-of, primeiramente atende a um velho gosto meu pela metalinguagem. Volta e meia, estou a falar da crônica na própria crônica, de sua estrutura e intenções, de sua composição. É cíclica essa motivação, sem que eu a planeje. Isso porque aprecio a forma do texto, a mancha gráfica das letras impressas no papel, e também gosto das entrelinhas, dos bastidores das idéias. <br /><br />Mas, se outra vez disponho-me a falar do ato de escrever a crônica, e se já começo fazendo as contas da produção acumulada, não será para me sentir um veterano no oficio – embora uns me vejam nessa condição. Pelo contrário, será para reiterar a angústia que me toma antes da escrita. Sempre. <br /><br />Já me disseram que meu texto flui, como se fruto de um jorro espontâneo da mente, ao sabor dos dedos ágeis no teclado. Não pode haver impressão mais errada. Escrever, para mim, é sempre um sofrimento. E dedos ágeis? Eu cato milho até hoje...<br /><br />Tem cabimento um marmanjo com quase 600 crônicas nas costas ainda querer fugir antes de começar uma nova? Pois é o que acontece comigo. Por força de duas senhoras gordas e espaçosas que moram dentro de minha neurótica cabeça: Dona Autocrítica e Dona Expectativa. Não sou daqueles caras que chegam em casa tomados de inspiração e correm ao computador para escrever. Se a inspiração vem, eu espero ela passar! <br /><br />Tampouco uso meu tempo livre para escrever o que for. Escrevo por obrigação. Sem a pressão do prazo, não sai uma linha desses dedos. Tenho coisas melhores a fazer do que sofrer diante de um teclado. É por isso que me causa desconforto ser chamado de escritor. Ah, tá, escritor! Fala sério...<br /><br />Agora, amigo leitor, já lhe ouço perguntar por que diabos insisto nesse ofício. É porque, vencido o início paralisante, tendo calado as matracas das duas gordas, é puro tesão terminar um texto. A sensação é de recompensa. É como dar à luz um ser. Aliás, acho que entendo as mulheres quando alardeiam a insuportável dor do parto, mas não se negam à próxima gestação.Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-75307679552348304192011-09-16T06:43:00.000-07:002011-09-16T06:46:16.099-07:00Um beijo do amor<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjXNYJbEGK0Qh5HdD13oK3r6z3_boLmKP5ecsnrMajNsFHK-YFqj6nkhhJDeMbIV8MLsgXJyLAZsTpDPPkSwfFzkYKewPr3A87S_t0_AQLrTg38IdNU5jth-WjigIUXokJoyBUlVSCMOYbp/s1600/anjo2.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 400px; height: 284px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjXNYJbEGK0Qh5HdD13oK3r6z3_boLmKP5ecsnrMajNsFHK-YFqj6nkhhJDeMbIV8MLsgXJyLAZsTpDPPkSwfFzkYKewPr3A87S_t0_AQLrTg38IdNU5jth-WjigIUXokJoyBUlVSCMOYbp/s400/anjo2.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5652953279951471394" /></a><br />Nivaldo Pereira<br /><br />Crônica publicada no Pioneiro, 09/11/2011<br /><br />Eu jantava num restaurante com um amigo, quando senti o toque macio em meu ombro. Antes que me virasse, recebi um beijo na face e ouvi uma voz infantil dizer “tchau”. Era uma menina loirinha, de uns cinco anos, com os traços da Síndrome de Down. Ela foi ao outro lado e repetiu a ação com meu amigo: um beijo, tchau. Fez o mesmo com mais umas três pessoas de outras mesas, enquanto a família a esperava, a caminho da saída. Dissemos tchau, acenamos, todos tocados e desconcertados com aquela súbita demonstração de um carinho tão inocente quanto incondicional.<br /><br />Não houve tempo de perguntar-lhe o nome, a idade, comentar qualquer coisa. Apenas trocamos olhares cúmplices com a família da menina, um tanto de embaraço nosso, muito de simpatia deles, na mútua compreensão de quem sabe que o amor às vezes aparece assim, puro, generoso, incondicional. <br /><br />Não havia na atitude deles o mínimo sinal de um talvez pedido de desculpas pelo provável incômodo. Nenhum meneio de cabeça reprovador a indicar obediência às convenções sociais que pressupõem limites definidos entre nosso espaço e o do outro. Aquela família já tinha sido tocada e transformada pelo amor irradiante da menina. Já era, também, toda amor. E foi com olhos afetivos e sorrisos que aquelas pessoas pareceram nos dizer: nosso anjo bom escolheu vocês para um beijo, uma bênção.<br /><br />Eu e meu amigo não comentamos a chegada inesperada da garotinha. Seguimos o papo interrompido, mas impossível negar que algo de especial tinha acontecido. Pouco antes, tínhamos feito voltar a pizza, que viera além do ponto. Há que se estar atento aos próprios direitos. Há que se estar na defensiva. Sempre de armas em riste, couraças, armaduras. Aí, um beijo anônimo vem e nos desarma. <br /><br />A nova pizza chegou, no ponto exigido, comemos em silêncio. E ficamos meio aéreos, dispersos, olhando as caras, as mesas cheias das ânsias da noite de sábado. Era até cedo, mas logo decidimos ir para nossas casas.<br /><br />Eu só queria dormir, me entregar no colo da vida. Só queria sonhar na graça de um amor que, feito chuva repentina, inunda-nos de bondade e esperança no futuro.Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-65736527585350726892011-09-05T09:39:00.000-07:002011-09-05T09:43:20.782-07:00Minha doce flauta doce<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjlshpZi0FC6FOSo3oa3rRrftQ9S1fheLlywZ1jOxF1AVeqJS6RwEWfIAY4oL7_qCX3LewZBIXqNFAsXRwncpGWSf1NeUTebsBgV-kOGpEzAf0232eJsm0zYuDz7PgnknltjfwvBgBHSJLg/s1600/flauta-doce.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 300px; height: 225px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjlshpZi0FC6FOSo3oa3rRrftQ9S1fheLlywZ1jOxF1AVeqJS6RwEWfIAY4oL7_qCX3LewZBIXqNFAsXRwncpGWSf1NeUTebsBgV-kOGpEzAf0232eJsm0zYuDz7PgnknltjfwvBgBHSJLg/s400/flauta-doce.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5648917050934630386" /></a>
<br />Nivaldo Pereira
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<br />Crônica publicada no Pioneiro, 02/09/2011
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<br />Tentava me concentrar num livro. Era cedo para entregar-me ao sono, sob o risco de acordar pouco depois e não dormir mais. Foi quando um som da vizinhança me ligou inteiro. Flauta doce. Algum iniciante praticava o instrumento, entoando obras já clássicas para esse aprendizado, como <em>Noite Feliz </em>e <em>Asa Branca</em>. As canções soavam mais lentas, com direito a derrapadas nas notas, típico de quem ainda não tem a destreza dos dedos nos furos da flauta. O que me despertou não foi bem a cadência musical: foi a memória.
<br />
<br />Vi-me outra vez com 16 anos, quando cismei de tocar flauta doce. Havia no ar ecos tardios da geração hippie – e eu trazia na lembrança uma cena de anos antes: praia isolada de Salvador, um cabeludo sob um coqueiro, uma mochila surrada de lado, ele tocando uma flauta, um riacho límpido correndo para o mar. A flauta do hippie parecia ser uma varinha mágica, batuta de maestro que orquestrasse os demais elementos naquele quadro de paz e amor.
<br />
<br />Aos 16, nas tensões de perda da inocência e na ânsia de viver música, talvez fosse natural esse remoto apelo da flauta mágica. Pois era de paz e amor a visão de uma colega recostada numa árvore, na hora do recreio, entoando com desenvoltura <em>Jesus, Alegria dos Homens</em>. Fissurei no ato. Onde você comprou? Quanto custou? Como aprendeu? Deixei de merendar por um mês, andei a pé, até juntar o dinheiro para minha flauta. Marca Heringer, amarelinha. A colega emprestou-me o primeiro volume do livro Minha Doce Flauta Doce. E minha vida mudou.
<br />
<br />Em casa, não queria saber de mais nada que não fosse praticar a flauta. Era o máximo identificar as notas na partitura, os acordes, até os chatos bemóis e sustenidos. E infernizava o povo com meus treinos. Logo veio o segundo volume do livro. E eu já me exibia tocando <em>Imagine</em>, sem partitura. Um luxo.
<br />
<br />Já nem sei em que momento a minha doce flauta doce foi morar de vez num fundo de gaveta. Perdeu-se, como tanta coisa bonita na vida. Agora, tantos anos depois, um som de flauta da vizinhança me tirou o sono. Oh, sentimentos difusos! Nessas horas, como seria bom poder tocar um instrumento...
<br />Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-39792594388813250852011-08-30T04:29:00.000-07:002011-08-30T04:32:43.037-07:00Melancolia<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicZjeHaBT6qgTovxSaHWweu8qvqIaxSLRW_f8JELcpucchOyQAWg2aZeaH4rRAmS7plIFyyS352w5lWMBksdPBi3Q04JKO4O40okisapsCEnwQd_uczMFY95DiBZ-CHsMD1iKJYfY98VFV/s1600/ala.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 400px; height: 250px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicZjeHaBT6qgTovxSaHWweu8qvqIaxSLRW_f8JELcpucchOyQAWg2aZeaH4rRAmS7plIFyyS352w5lWMBksdPBi3Q04JKO4O40okisapsCEnwQd_uczMFY95DiBZ-CHsMD1iKJYfY98VFV/s400/ala.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5646610416555878258" /></a>
<br />Nivaldo Pereira
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<br />Crônica publicada no Pioneiro, 26/08/2011
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<br />Melancolia, do dinamarquês Lars von Trier, é um filme sobre o qual a gente quer conversar, até precisa conversar, porque ele insiste em continuar passando em nossa tela mental mesmo com o fim da sessão de cinema. Esse é o efeito de uma verdadeira obra de arte: tocar fundo o humano por abordar temas essenciais da vida. E seria a melancolia um tema assim, de tanto peso? Basta dizer que ela pode ser associada a uma falta de sentido no viver para percebermos sua relevância – ou seu perigo.
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<br />Sou fã de carteirinha do Lars, cada filme seu é um abalo, e eu gosto demais de experiências viscerais. Vivo desse modo uma catarse à grega, fruindo no cinema o que seria insuportável como realidade. É a magia da sétima arte. E em Melancolia, o que vamos experimentar é o real e atual medo do fim do mundo, reforçado por funestos mitos apocalípticos ou pela constatação pontual da fúria da natureza. Sim, vamos acabar, só não sabemos quando nem como. Que atitude nos cabe diante disso?
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<br />É genial a idéia do diretor de encarnar nosso provável fim como um planeta chamado Melancolia, que entra no sistema solar e ameaça chocar-se com a Terra. Nas mãos de Lars von Trier, que nunca pisou em Hollywood, isso é menos ficção científica e mais uma metáfora de cunho filosófico e psicológico. O dicionário define melancolia como “estado afetivo caracterizado por profunda tristeza e desencanto geral”. Para além de temores catastróficos, não seria o desencanto uma marca dos nossos dias? Levante aí o dedo salvador quem ainda tem uma bandeira de consistente ideologia.
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<br />Tomados de desencanto, na vibração do azulado e fascinante planeta Melancolia, caímos no tédio e na prostração. Voltando ao dicionário, a tristeza da melancolia pode ser vaga e até doce, favorecendo o devaneio e a meditação. É aquela tristezazinha boa de sentir, sem causa aparente, que nos faz poetar diante da bruma na janela. Não mata. Mas achata.
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<br />Ok, se o fim é certo, a melancolia é sintoma. E a saída? Uma caverna mágica onde se esconder, um lugar de imaginação e esperança, qualquer forma de arte. Pois a arte sempre vai salvar o homem. Sempre.
<br /> Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-52422510060748128042011-08-24T05:56:00.000-07:002011-08-24T05:59:18.298-07:00Crônicas portuguesas 4: Depois do santuário<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjfbZ0gpHTdYquGoohNEUvJFLYmY6dU-rE3AFiXhOSTHuI-gla4y5q2dvlPcZudQGTaHYVxp2xzuFI3BqWyTAMmW0GCtN3UpBidepYBMk-SZEvSYd-68wBhhC57r3Ztf1SfabGi1JiTBFhe/s1600/FATIMA%257E1.JPG"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 373px; height: 400px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjfbZ0gpHTdYquGoohNEUvJFLYmY6dU-rE3AFiXhOSTHuI-gla4y5q2dvlPcZudQGTaHYVxp2xzuFI3BqWyTAMmW0GCtN3UpBidepYBMk-SZEvSYd-68wBhhC57r3Ztf1SfabGi1JiTBFhe/s400/FATIMA%257E1.JPG" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5644406306833597058" /></a>
<br />Nivaldo Pereira
<br />Publicada no Pioneiro, 29/05/2009
<br />
<br />Eu tomava uma taça de vinho, num café de Lisboa, anotando em meu diário de viagem as impressões do dia. Tinha ido ao Santuário de Fátima. Fora motivações de fé pessoal, eu gosto de conhecer um país também pelo seu aspecto religioso. E ficara impressionado com a mística do santuário. Há algo no ar. Meu lado mental logo veio explicar que esse algo “fluido” é fruto das intenções de milhares de pessoas que para lá se dirigem, em busca de contato com o divino. É psiquismo coletivo. Mas que importa a origem da força? Deus lá fora, ou Deus cá dentro, como motivador, que diferença faz, se o milagre possa ser real?
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<br />Anotei no diário que a famosa azinheira, sobre a qual Nossa Senhora teria surgido para três crianças, em 1917, foi desfolhada pelo povo nos anos seguintes às aparições. Não restou nem um graveto da árvore. Outra azinheira próxima é hoje protegida por grades. Achei o máximo esse toque pagão da fé.
<br />
<br />No meio das anotações, por uma magia absoluta (não há espaço para relatar isso), fiz dois amigos, um deles professor de história. Entre animados papos de coisas portuguesas e brasileiras, fomos jantar bacalhau na Alfama. E falei que estivera em Fátima de manhã. O historiador olhou-me decepcionado. Explicou que a exploração das tais aparições da Virgem em Fátima foi um dos grandes golpes do ditador Antônio Salazar para dominar o povo. Um embuste histórico, garantiu-me. E citou fatos e conchavos políticos, num claro relato de teoria conspiratória. Não pude esconder o espanto.
<br />
<br />Em busca de suportes de fé mais sólidos, lembrei que estávamos perto da casa onde tinha nascido Santo Antônio, quando este ainda se chamava Fernando. Fernando? Como assim? O espanto agora era do professor. Contei que o nome de batismo do santo era Fernando, que adotara o Antônio somente quando virara franciscano. Contei ainda que o poeta Fernando Pessoa nascera a 13 de junho, dia do santo português, por isso fora batizado de Fernando Antônio. Interlocutores de bocas abertas. Surpresos.
<br />
<br />Ah, viagens, viagens. Tem coisa melhor no mundo do que conhecer outros mundos e partilhar nossos mundos?
<br />
<br />Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-41922555434097547712011-08-24T05:49:00.000-07:002011-08-24T05:54:50.093-07:00Crônicas portuguesas 3: curta-metragem gótico<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhEgtDxAYo7dnHYHxI-Q7fvquhiHREz6KIXL9QKFLyZ8eN4k_8bvo_5feNAFLdbfIvJT7H6OC35PJvKrGQlq0aX_L4XqdQsK_yEcQTRA6tYMUk_FC3PZZqMWslAwCXgeQl1xL12NChWc2xU/s1600/hellboy2.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 400px; height: 300px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhEgtDxAYo7dnHYHxI-Q7fvquhiHREz6KIXL9QKFLyZ8eN4k_8bvo_5feNAFLdbfIvJT7H6OC35PJvKrGQlq0aX_L4XqdQsK_yEcQTRA6tYMUk_FC3PZZqMWslAwCXgeQl1xL12NChWc2xU/s400/hellboy2.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5644405152811202706" /></a>
<br />Nivaldo Pereira
<br />Publicada no Pioneiro, 27/03/2009
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<br />Quantos anos teria ela? Talvez 17. Dentes para fora, olhos sonolentos e muitas espinhas no rosto anguloso contribuíam para a primeira impressão: era uma garota muito feia. Estava na parada de ônibus onde eu e meu amigo chegamos, no centro da cidade de Porto, com as calças ensopadas pela chuva fria açoitada por um vento que a toda hora virava nossos guarda-chuvas. Foi assim que Porto me recebeu, eu vindo de trem de Lisboa: com céu borrascoso e ventania gelada. Meu amigo esperava-me na estação. Deixei o mochilão na casa dele, e fomos dar uma banda no centro, tagarelando nossa paixão comum pelo cinema. Passeio abortado pelo clima, melhor ver um filme em casa. E encontramos a mocinha medonha naquela medonha noitinha.
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<br />Ela encarou-nos separadamente, feito hipnotizadora, de olhos fixos. E puxou conversa com meu amigo, eu de platéia. Dúvida sobre o número do ônibus que passava no bairro dela, a demora, o mau tempo. Aí ela tirou da bolsa um DVD e mostrou: “Ao menos ter vindo à cidade valeu por achar este filme”. Era Hellboy 2. Meu amigo comentou o primeiro filme, legal, coisa e tal. E ela: “Mas eu gosto mesmo é do Val Helsing, porque reúne os monstros clássicos”. E disse que tinha uma miniatura de um castelo assombrado, que costumava por na janela do quarto. Meu amigo deu corda: “É para afugentar os fantasmas?”. Ela, em sotaque português: “Ou para convidá-los, não sei bem.”
<br />
<br />Eu estava achando o máximo aquele curta-metragem insólito sobre cinema de horror no sombrio cair da noite sobre Porto. A garota feia prosseguiu: “Conhecem os irmãos gêmeos? Há sempre um bom e outro mau. Eu sou assim, este é meu signo. Nem sempre sou boazinha, tem dias que sou muito malvada.” Corte abrupto na narrativa: o ônibus esperado por ela chegava. Sem dar tchau, seguiu a pequena fila para entrar, encarando as pessoas, como havia feito a nós. Rimos da figuraça. Geminiana, como eu, luzes e sombras na alma, dialética e humor como salvação.
<br />
<br />Dia seguinte, ao sair para trabalhar, meu amigo acordou-me anunciando um surpreendente sol em céu azulão lá fora. E eu saí para viver outros filmes.
<br />Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-47958146813461476322011-08-24T05:43:00.000-07:002011-08-24T05:48:27.617-07:00Crônicas portuguesas 2: Fados<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjYfrQDczFUQAI6Hk4aCPSvtVwChPbq4gjqJshrdpp2YO3nuLNNjM-Np1dbnFudHeAirrCvD6Itv9VvYG0R9vCaHWBKqhAv3CCD8YpjDFSgPjhsOB7nyJHchq1IWvMEhUrRqY1RpYAsfwxO/s1600/AMLIA_%257E1.JPG"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 296px; height: 400px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjYfrQDczFUQAI6Hk4aCPSvtVwChPbq4gjqJshrdpp2YO3nuLNNjM-Np1dbnFudHeAirrCvD6Itv9VvYG0R9vCaHWBKqhAv3CCD8YpjDFSgPjhsOB7nyJHchq1IWvMEhUrRqY1RpYAsfwxO/s400/AMLIA_%257E1.JPG" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5644403485359856674" /></a>
<br />Nivaldo Pereira
<br />Publicada no Pioneiro, 17/04/2009
<br />
<br />Viagem feita jamais cessa de recomeçar. Pois sempre surge a memória, liberta do passado, a recriar a viagem a cada evocação, ampliando-a, recortando-a de mil maneiras, lançando-me outra vez na estrada. Por isso, não sigo a pressa de fixar o já vivido em trânsito num jorro contínuo de confissões. Busco, sim, ruminá-lo devagar, qual boi manhoso que, na aprazível noitinha do curral, degusta sabores inéditos nas dobras sutis do capim engolido displicentemente na voragem do dia. Na bovina languidez do agora, o cheiro de pão torrado na vizinhança me conduz ao odor similar da cozinha do albergue em Lisboa. E a viagem se reinventa, no café matinal entre estrangeiros como eu.
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<br />Passo manteiga na fatia torrada de pão. Os ouvidos fisgam a voz de uma jovem ajudante da cozinha ao lado. É uma negra retinta e bonita – pelo sotaque, certamente vinda de alguma ex-colônia portuguesa na África. Volta e meia pergunta à colega de cozinha – esta, sim, portuguesa – como se diz alguma coisa. Há forte lamento no tom da negra. O que se confirma na primeira frase que escuto inteira: “Sofro por causa daquele homem desde meus 15 anos de idade”. Espicho todas as minhas 800 orelhas. Ela desfia seus infortúnios. Era mocinha, inocente, e mesmo assim o pai a expulsou de casa, quando soube do romance dela com o tal homem. Chovia torrencialmente, a noite era tão escura que nada se podia ver no caminho. Ela saiu andando, na lama, chorando, com medo dos raios...
<br />
<br />Um hóspede interrompe o relato, pedindo mais leite. Fico fazendo hora, querendo o fim da história. Mas a negra se cala. E eu saio à rua. Vou da Baixa ao Chiado, onde ouço, numa ladeira, a voz de Amália Rodrigues a entoar um fado pungente. A canção sai de um quiosque de discos, bem na rua. Dias depois, vejo no documentário Fados, de Carlos Saura, que o ritmo português nasceu da troca cultural havida com a gente vinda das colônias de África e Brasil. Assim, brasileiro, adiciono ao fado real da negra e ao canto de Amália, meu herdado dom de ser um sentimental. E a viagem se redesenha em fragmentos de lusitana saudade, a compor inesperados azulejos.
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<br />
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<br />Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-86890819594906623042011-08-24T05:36:00.001-07:002011-08-24T05:49:16.922-07:00Crônicas portuguesas 1: Quatro túmulos e dois cegos<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEii7samtb30uJofl-DeDZGNuF_Dl20IggB0LDfCbu0voi6Ezl99u-t7UDqN_egFGHyUQL29v7dAAIZmu2_nI9m-bHn0qWnDEwP6EDLSAZfCMfTALXVr_t1ofQ2k2n0Yg-kADfZvKMquDMgP/s1600/vasco.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 400px; height: 300px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEii7samtb30uJofl-DeDZGNuF_Dl20IggB0LDfCbu0voi6Ezl99u-t7UDqN_egFGHyUQL29v7dAAIZmu2_nI9m-bHn0qWnDEwP6EDLSAZfCMfTALXVr_t1ofQ2k2n0Yg-kADfZvKMquDMgP/s400/vasco.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5644402105343523602" /></a>
<br />Nivaldo Pereira
<br />Publicada no Pioneiro, 13/03/2009
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<br />Oeste de Lisboa. Fustigada pelas águas inquietas da foz do Tejo, a Torre de Belém revela em suas pedras a ousadia mítica do povo que fez do mar vereda para o desconhecido. Ali perto, o Mosteiro dos Jerônimos dá testemunho, em sua arquitetura no estilo gótico manoelino, do quanto valeu a pena tal ousadia. Glória de Deus, bravura dos homens, riquezas do Brasil recém-achado, e eis a suntuosa edificação religiosa que impressiona e encanta com seu rendilhado na fachada. Dentro da igreja, um vitral faz incidir a luz da tarde sobre um túmulo portentoso, o do poeta Camões, cujos versos louvaram os feitos de Vasco da Gama, o intrépido navegador que rasgou do oceano uma nova rota para o Oriente e que repousa em outro túmulo espetacular, mais à esquerda. Gostei de vê-los ali, alinhados, o herói e seu trovador, história e poesia em parceria de eternidade.
<br />
<br />Mais adiante, sob um silêncio quase sólido, dou de cara com um túmulo sobre dois elefantes de pedra. A inscrição informa: Dom Sebastião. Mas é túmulo de ficção, pois o jovem rei português nunca retornou da batalha contra os marroquinos em 1578, nem seu corpo foi jamais encontrado. No entanto, esperar pela volta do rei, envolto em névoas, virou uma seita que chegou até o nordeste brasileiro. Lembro na hora dos versos de Fernando Pessoa: “Quanto é melhor, quando há bruma, / Esperar por Dom Sebastião, / Quer venha ou não!”
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<br />Logo depois, fora da igreja, no claustro do mosteiro, dá-se a surpresa. Três cubos empilhados guardam os restos mortais dele, Fernando Pessoa. Uma professora explica aos aluninhos que a poesia do Pessoa era tão imensa, que ele precisou inventar outros nomes para dar conta do dom. Aí, passa um rapaz, guiado por um cão, tendo ao braço a mão zelosa de uma senhora. Um cego muito bonito, feito modelo. As crianças olham. Eu olho. O que faria um cego num museu? Sorveria atmosferas? Versos numa das faces dos cubos de Pessoa respondem, magicamente: “Não basta abrir a janela / Para ver os campos e o rio. / Não é bastante não ser cego / Para ver as árvores e flores.”
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<br />Lágrimas em jato turvam tudo. Choro no claustro, de pena da minha cegueira.
<br />Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6455597525550586418.post-23984114552161248702011-08-24T05:28:00.000-07:002011-08-24T05:33:30.894-07:00O imaginário das ruas<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEga9rBphyhuasVcXLiWzu9AD02KFNiNZO3239h5Eaer4nHWjIBhWMhYMaIe_bvS0GnDxkPbgR1Wq05JQ2Ece1ymlMf5sEWHQaYctJufNZArMVOhyphenhypheng3fWhbtKbvsEgzDHtum_NHD2IMOn-tC/s1600/ipiranga-sao-joao.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 390px; height: 336px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEga9rBphyhuasVcXLiWzu9AD02KFNiNZO3239h5Eaer4nHWjIBhWMhYMaIe_bvS0GnDxkPbgR1Wq05JQ2Ece1ymlMf5sEWHQaYctJufNZArMVOhyphenhypheng3fWhbtKbvsEgzDHtum_NHD2IMOn-tC/s400/ipiranga-sao-joao.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5644399517969331826" /></a>
<br />Nivaldo Pereira
<br />Crônica publicada no Pioneiro, 19/08/2011
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<br />Gosto de artes que definem ou reinventam espaços reais. Por exemplo: músicas e poemas sobre cidades, bairros, ruas. Quando transito por algum lugar que já tenha sido cantado ou contado antes, o imaginário sempre emerge como um começo de diálogo com tal território. É uma delícia flanar pelas ruas de Porto Alegre com a bússola do Quintana ou mergulhar no mar da Bahia sob as ondas do Caymmi. Não consigo transitar pelo cruzamento das avenidas Ipiranga e São João sem evocar a Sampa do Caetano. Ou caminhar pelo Recife sem atentar para os rios, pontes e overdrives do Chico Science.
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<br />O imaginário é poderoso. Não fossem os romances de Erico Verissimo, lidos na adolescência, posso quase garantir que jamais deixaria a Bahia para viver no Rio Grande do Sul. Muito do fascínio que sinto por Minas Gerais deve-se aos livros do Guimarães Rosa e às canções do Milton Nascimento. É bíblico: o verbo está no princípio. E quando este verbo vem embebido de uma prosa magistral ou de versos musicados, pronto: o mundo que ali se anuncia ganha ares míticos, espaço de fantasia, morada de deuses e heróis. A Baixa dos Sapateiros de hoje pode ser feia e suja, mas ali para sempre andará a morena mais frajola da Bahia – como quis Ary Barroso.
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<br />Na vibração do Tolstoi, falar da nossa aldeia é premissa para um alcance universal. A Caxias do Sul da obra de José Clemente Pozenato, em livro e filme, correu mundo. A cidade, assim, ganhou uma relevante cartografia mítica. Só acho que a moderna Caxias é pouco mapeada pelos seus artistas. Há muita nostalgia e memória e raro trato à bola contemporânea. Desconfio que possa haver aí um medo de se soar provinciano ou que falte mesmo amor pelo lugar em que se vive. Entre honrosas exceções, cito os versos urbanos do Dhynarte Albuquerque e as canções da Camila Cornutti. Mas é pouco.
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<br />Alô, poetas e músicos: já para as ruas! Há sonhos espalhados nas calçadas da Júlio, há juras de amor no Parque dos Macaquinhos, há delírios na Praça Dante, há pressa na Visconde e promessa na Garibaldi. Olhem: eis uma cidade enorme, ainda emudecida sobre a própria identidade.
<br />Nivaldo Pereirahttp://www.blogger.com/profile/11174875452930677433noreply@blogger.com0