Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
Os vivos e os mortos
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 04/11/2011
Brisa fria, manhã de Finados. Uns dormem, na paz do feriado; outros, despertos, pensam nos que dormem em paz nos campos santos. O dia dos mortos é também dia dos mortos de saudades. O vento da primavera quer saber a inverno, como se plasmasse no ar a frieza de lápides e ausências. Quer, esse vento, retornar à estação passada, conter o verão de exuberâncias incabíveis quando lutos se arrastam no choro das perdas. Mas a vida empurra, a vida puxa pelos cabelos, a vida é feita de seguir em frente. E o vento cede, se deixa aquecer de calores suaves, feito lágrima que secasse e riso que se anunciasse. Oh, brisa fria, então não sabes que gelos não podem ser eternos?
O sol, potro fogoso, sobe no caminho azul do céu, firma-se em calor e vontade. A luz irradiante é mais que convite, é ordem para ações e direções. Frear tal ímpeto soa a negação da natureza. E o natural não é a negação da morte, mas a afirmação da vida pela morte. Há que se pensar bem na vida quando a morte é tão certa. Um dia para os mortos, todos os dias para os vivos. Quem não vive tem medo da morte: palavras do Itamar Assumpção, poeta morto. Morte dói, mas sem ela a vida fica sem limite, sem propósito, sem urgência. Por isso o sol decreta: levanta e anda! Respira e vive!
A noite, sem sol, espelha no firmamento luzeiros vivos e lembranças de estrelas. Sim: lembranças, pois que tantas delas nem mais existem, reduzidas à viagem da antiga luz pelo espaço. Meras memórias, mas tão reais! Ocultas pela proximidade urgente desse sol que arrebenta o dia, as estrelas em memória continuam a rodar, lá atrás, em seus lugares no desenho ancestral das constelações. Presentes e invisíveis, qual manto mágico a tudo envolver. Feito nossos mortos: brilhos de nossa memória, limites do que fomos e do que nos resta ser.
Eu abro a janela na manhã de Finados. A brisa fria dói em saudades dos meus mortos. Mas esses mortos, bem sei, me querem vivo e feliz. E nesse propósito eu sigo, montado no potro solar. Quem não vive tem medo da morte: sempre é bom ouvir o som do meu saudoso Itamar. Negra melodia, estrela, estrela.
A mulher e as pitangas
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 28/10/2011
São três pitangueiras carregadinhas. As frutas, em amarelo e vermelho, poucas ainda verdes, se oferecem a quem as quiser. Na névoa rala que evanesce a paisagem do cedo matinal, uma mulher estica o braço, colhe as pitangas mais graúdas. Repete o ato na árvore seguinte, e na outra. Sai com a mão cheia. Tudo até natural, numa manhã de outubro, safra da fruta silvestre. A nota dissonante? O fato de as pitangueiras estarem numa calçada do centro de Caxias do Sul, subida da Rua Garibaldi, na quadra entre a Pinheiro e a Júlio.
A mulher, uma transeunte nos seus que-fazeres, põe na bolsa as pitangas, sobe a rua. Eu viro o pescoço, viro a esquina. O cruzamento de vias já é um ruído absoluto, de fúria e velocidade àquela hora. Começa uma terça-feira de urgências, numa cidade que não gosta de perder tempo. Meu olhar, já noutra direção, registra uma sintonia entre as cores das frutinhas – vermelho, amarelo, verde – e as cores do semáforo. Um anjo vagabundo, desses que vadiam nas esquinas, pisca para mim, como a dizer sem palavras: “Achou assunto para a crônica, hein?” Quis saber a que assunto ele se referia, mas, anjo vadio, evapora-se na névoa.
O dia passou, mas ficou a imagem da mulher que colheu pitangas, ficaram as cores do semáforo, ficou a pressa das ruas. Agora, na hora de processar isso tudo, um olhar em verde, de leituras aceleradas e imediatistas, enxerga na mulher das pitangas apenas a esperteza de quem achou frutas dando sopa, de graça, e juntou quantas conseguiu, qual troféu de sorte. Um olhar em amarelo já pede calma na avaliação. Então não havia ar de surpresa no gesto da mulher? A quem se destinaria as frutas colhidas? Talvez seja uma festa ela entregar a alguém o punhado de pitangas e a origem: colhidas bem ali, na calçada...
Por fim, surge um olhar em vermelho, sempre maduro. A mulher parou, interrompeu suas urgências para uma ação tão natural, até inocente. Parei eu, por instantes, para mirar essa cena rara. Vagares na manhã de uma cidade de pressas, cidade que nunca pára. Cidade que detesta sinais vermelhos.
Ei, anjo vadio, então era esse o tema?
Crônica publicada no Pioneiro, 28/10/2011
São três pitangueiras carregadinhas. As frutas, em amarelo e vermelho, poucas ainda verdes, se oferecem a quem as quiser. Na névoa rala que evanesce a paisagem do cedo matinal, uma mulher estica o braço, colhe as pitangas mais graúdas. Repete o ato na árvore seguinte, e na outra. Sai com a mão cheia. Tudo até natural, numa manhã de outubro, safra da fruta silvestre. A nota dissonante? O fato de as pitangueiras estarem numa calçada do centro de Caxias do Sul, subida da Rua Garibaldi, na quadra entre a Pinheiro e a Júlio.
A mulher, uma transeunte nos seus que-fazeres, põe na bolsa as pitangas, sobe a rua. Eu viro o pescoço, viro a esquina. O cruzamento de vias já é um ruído absoluto, de fúria e velocidade àquela hora. Começa uma terça-feira de urgências, numa cidade que não gosta de perder tempo. Meu olhar, já noutra direção, registra uma sintonia entre as cores das frutinhas – vermelho, amarelo, verde – e as cores do semáforo. Um anjo vagabundo, desses que vadiam nas esquinas, pisca para mim, como a dizer sem palavras: “Achou assunto para a crônica, hein?” Quis saber a que assunto ele se referia, mas, anjo vadio, evapora-se na névoa.
O dia passou, mas ficou a imagem da mulher que colheu pitangas, ficaram as cores do semáforo, ficou a pressa das ruas. Agora, na hora de processar isso tudo, um olhar em verde, de leituras aceleradas e imediatistas, enxerga na mulher das pitangas apenas a esperteza de quem achou frutas dando sopa, de graça, e juntou quantas conseguiu, qual troféu de sorte. Um olhar em amarelo já pede calma na avaliação. Então não havia ar de surpresa no gesto da mulher? A quem se destinaria as frutas colhidas? Talvez seja uma festa ela entregar a alguém o punhado de pitangas e a origem: colhidas bem ali, na calçada...
Por fim, surge um olhar em vermelho, sempre maduro. A mulher parou, interrompeu suas urgências para uma ação tão natural, até inocente. Parei eu, por instantes, para mirar essa cena rara. Vagares na manhã de uma cidade de pressas, cidade que nunca pára. Cidade que detesta sinais vermelhos.
Ei, anjo vadio, então era esse o tema?
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