Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







terça-feira, 30 de agosto de 2011

Melancolia


Nivaldo Pereira

Crônica publicada no Pioneiro, 26/08/2011

Melancolia, do dinamarquês Lars von Trier, é um filme sobre o qual a gente quer conversar, até precisa conversar, porque ele insiste em continuar passando em nossa tela mental mesmo com o fim da sessão de cinema. Esse é o efeito de uma verdadeira obra de arte: tocar fundo o humano por abordar temas essenciais da vida. E seria a melancolia um tema assim, de tanto peso? Basta dizer que ela pode ser associada a uma falta de sentido no viver para percebermos sua relevância – ou seu perigo.

Sou fã de carteirinha do Lars, cada filme seu é um abalo, e eu gosto demais de experiências viscerais. Vivo desse modo uma catarse à grega, fruindo no cinema o que seria insuportável como realidade. É a magia da sétima arte. E em Melancolia, o que vamos experimentar é o real e atual medo do fim do mundo, reforçado por funestos mitos apocalípticos ou pela constatação pontual da fúria da natureza. Sim, vamos acabar, só não sabemos quando nem como. Que atitude nos cabe diante disso?

É genial a idéia do diretor de encarnar nosso provável fim como um planeta chamado Melancolia, que entra no sistema solar e ameaça chocar-se com a Terra. Nas mãos de Lars von Trier, que nunca pisou em Hollywood, isso é menos ficção científica e mais uma metáfora de cunho filosófico e psicológico. O dicionário define melancolia como “estado afetivo caracterizado por profunda tristeza e desencanto geral”. Para além de temores catastróficos, não seria o desencanto uma marca dos nossos dias? Levante aí o dedo salvador quem ainda tem uma bandeira de consistente ideologia.

Tomados de desencanto, na vibração do azulado e fascinante planeta Melancolia, caímos no tédio e na prostração. Voltando ao dicionário, a tristeza da melancolia pode ser vaga e até doce, favorecendo o devaneio e a meditação. É aquela tristezazinha boa de sentir, sem causa aparente, que nos faz poetar diante da bruma na janela. Não mata. Mas achata.

Ok, se o fim é certo, a melancolia é sintoma. E a saída? Uma caverna mágica onde se esconder, um lugar de imaginação e esperança, qualquer forma de arte. Pois a arte sempre vai salvar o homem. Sempre.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Crônicas portuguesas 4: Depois do santuário


Nivaldo Pereira
Publicada no Pioneiro, 29/05/2009

Eu tomava uma taça de vinho, num café de Lisboa, anotando em meu diário de viagem as impressões do dia. Tinha ido ao Santuário de Fátima. Fora motivações de fé pessoal, eu gosto de conhecer um país também pelo seu aspecto religioso. E ficara impressionado com a mística do santuário. Há algo no ar. Meu lado mental logo veio explicar que esse algo “fluido” é fruto das intenções de milhares de pessoas que para lá se dirigem, em busca de contato com o divino. É psiquismo coletivo. Mas que importa a origem da força? Deus lá fora, ou Deus cá dentro, como motivador, que diferença faz, se o milagre possa ser real?

Anotei no diário que a famosa azinheira, sobre a qual Nossa Senhora teria surgido para três crianças, em 1917, foi desfolhada pelo povo nos anos seguintes às aparições. Não restou nem um graveto da árvore. Outra azinheira próxima é hoje protegida por grades. Achei o máximo esse toque pagão da fé.

No meio das anotações, por uma magia absoluta (não há espaço para relatar isso), fiz dois amigos, um deles professor de história. Entre animados papos de coisas portuguesas e brasileiras, fomos jantar bacalhau na Alfama. E falei que estivera em Fátima de manhã. O historiador olhou-me decepcionado. Explicou que a exploração das tais aparições da Virgem em Fátima foi um dos grandes golpes do ditador Antônio Salazar para dominar o povo. Um embuste histórico, garantiu-me. E citou fatos e conchavos políticos, num claro relato de teoria conspiratória. Não pude esconder o espanto.

Em busca de suportes de fé mais sólidos, lembrei que estávamos perto da casa onde tinha nascido Santo Antônio, quando este ainda se chamava Fernando. Fernando? Como assim? O espanto agora era do professor. Contei que o nome de batismo do santo era Fernando, que adotara o Antônio somente quando virara franciscano. Contei ainda que o poeta Fernando Pessoa nascera a 13 de junho, dia do santo português, por isso fora batizado de Fernando Antônio. Interlocutores de bocas abertas. Surpresos.

Ah, viagens, viagens. Tem coisa melhor no mundo do que conhecer outros mundos e partilhar nossos mundos?

Crônicas portuguesas 3: curta-metragem gótico


Nivaldo Pereira
Publicada no Pioneiro, 27/03/2009

Quantos anos teria ela? Talvez 17. Dentes para fora, olhos sonolentos e muitas espinhas no rosto anguloso contribuíam para a primeira impressão: era uma garota muito feia. Estava na parada de ônibus onde eu e meu amigo chegamos, no centro da cidade de Porto, com as calças ensopadas pela chuva fria açoitada por um vento que a toda hora virava nossos guarda-chuvas. Foi assim que Porto me recebeu, eu vindo de trem de Lisboa: com céu borrascoso e ventania gelada. Meu amigo esperava-me na estação. Deixei o mochilão na casa dele, e fomos dar uma banda no centro, tagarelando nossa paixão comum pelo cinema. Passeio abortado pelo clima, melhor ver um filme em casa. E encontramos a mocinha medonha naquela medonha noitinha.

Ela encarou-nos separadamente, feito hipnotizadora, de olhos fixos. E puxou conversa com meu amigo, eu de platéia. Dúvida sobre o número do ônibus que passava no bairro dela, a demora, o mau tempo. Aí ela tirou da bolsa um DVD e mostrou: “Ao menos ter vindo à cidade valeu por achar este filme”. Era Hellboy 2. Meu amigo comentou o primeiro filme, legal, coisa e tal. E ela: “Mas eu gosto mesmo é do Val Helsing, porque reúne os monstros clássicos”. E disse que tinha uma miniatura de um castelo assombrado, que costumava por na janela do quarto. Meu amigo deu corda: “É para afugentar os fantasmas?”. Ela, em sotaque português: “Ou para convidá-los, não sei bem.”

Eu estava achando o máximo aquele curta-metragem insólito sobre cinema de horror no sombrio cair da noite sobre Porto. A garota feia prosseguiu: “Conhecem os irmãos gêmeos? Há sempre um bom e outro mau. Eu sou assim, este é meu signo. Nem sempre sou boazinha, tem dias que sou muito malvada.” Corte abrupto na narrativa: o ônibus esperado por ela chegava. Sem dar tchau, seguiu a pequena fila para entrar, encarando as pessoas, como havia feito a nós. Rimos da figuraça. Geminiana, como eu, luzes e sombras na alma, dialética e humor como salvação.

Dia seguinte, ao sair para trabalhar, meu amigo acordou-me anunciando um surpreendente sol em céu azulão lá fora. E eu saí para viver outros filmes.

Crônicas portuguesas 2: Fados


Nivaldo Pereira
Publicada no Pioneiro, 17/04/2009

Viagem feita jamais cessa de recomeçar. Pois sempre surge a memória, liberta do passado, a recriar a viagem a cada evocação, ampliando-a, recortando-a de mil maneiras, lançando-me outra vez na estrada. Por isso, não sigo a pressa de fixar o já vivido em trânsito num jorro contínuo de confissões. Busco, sim, ruminá-lo devagar, qual boi manhoso que, na aprazível noitinha do curral, degusta sabores inéditos nas dobras sutis do capim engolido displicentemente na voragem do dia. Na bovina languidez do agora, o cheiro de pão torrado na vizinhança me conduz ao odor similar da cozinha do albergue em Lisboa. E a viagem se reinventa, no café matinal entre estrangeiros como eu.

Passo manteiga na fatia torrada de pão. Os ouvidos fisgam a voz de uma jovem ajudante da cozinha ao lado. É uma negra retinta e bonita – pelo sotaque, certamente vinda de alguma ex-colônia portuguesa na África. Volta e meia pergunta à colega de cozinha – esta, sim, portuguesa – como se diz alguma coisa. Há forte lamento no tom da negra. O que se confirma na primeira frase que escuto inteira: “Sofro por causa daquele homem desde meus 15 anos de idade”. Espicho todas as minhas 800 orelhas. Ela desfia seus infortúnios. Era mocinha, inocente, e mesmo assim o pai a expulsou de casa, quando soube do romance dela com o tal homem. Chovia torrencialmente, a noite era tão escura que nada se podia ver no caminho. Ela saiu andando, na lama, chorando, com medo dos raios...

Um hóspede interrompe o relato, pedindo mais leite. Fico fazendo hora, querendo o fim da história. Mas a negra se cala. E eu saio à rua. Vou da Baixa ao Chiado, onde ouço, numa ladeira, a voz de Amália Rodrigues a entoar um fado pungente. A canção sai de um quiosque de discos, bem na rua. Dias depois, vejo no documentário Fados, de Carlos Saura, que o ritmo português nasceu da troca cultural havida com a gente vinda das colônias de África e Brasil. Assim, brasileiro, adiciono ao fado real da negra e ao canto de Amália, meu herdado dom de ser um sentimental. E a viagem se redesenha em fragmentos de lusitana saudade, a compor inesperados azulejos.



Crônicas portuguesas 1: Quatro túmulos e dois cegos


Nivaldo Pereira
Publicada no Pioneiro, 13/03/2009

Oeste de Lisboa. Fustigada pelas águas inquietas da foz do Tejo, a Torre de Belém revela em suas pedras a ousadia mítica do povo que fez do mar vereda para o desconhecido. Ali perto, o Mosteiro dos Jerônimos dá testemunho, em sua arquitetura no estilo gótico manoelino, do quanto valeu a pena tal ousadia. Glória de Deus, bravura dos homens, riquezas do Brasil recém-achado, e eis a suntuosa edificação religiosa que impressiona e encanta com seu rendilhado na fachada. Dentro da igreja, um vitral faz incidir a luz da tarde sobre um túmulo portentoso, o do poeta Camões, cujos versos louvaram os feitos de Vasco da Gama, o intrépido navegador que rasgou do oceano uma nova rota para o Oriente e que repousa em outro túmulo espetacular, mais à esquerda. Gostei de vê-los ali, alinhados, o herói e seu trovador, história e poesia em parceria de eternidade.

Mais adiante, sob um silêncio quase sólido, dou de cara com um túmulo sobre dois elefantes de pedra. A inscrição informa: Dom Sebastião. Mas é túmulo de ficção, pois o jovem rei português nunca retornou da batalha contra os marroquinos em 1578, nem seu corpo foi jamais encontrado. No entanto, esperar pela volta do rei, envolto em névoas, virou uma seita que chegou até o nordeste brasileiro. Lembro na hora dos versos de Fernando Pessoa: “Quanto é melhor, quando há bruma, / Esperar por Dom Sebastião, / Quer venha ou não!”

Logo depois, fora da igreja, no claustro do mosteiro, dá-se a surpresa. Três cubos empilhados guardam os restos mortais dele, Fernando Pessoa. Uma professora explica aos aluninhos que a poesia do Pessoa era tão imensa, que ele precisou inventar outros nomes para dar conta do dom. Aí, passa um rapaz, guiado por um cão, tendo ao braço a mão zelosa de uma senhora. Um cego muito bonito, feito modelo. As crianças olham. Eu olho. O que faria um cego num museu? Sorveria atmosferas? Versos numa das faces dos cubos de Pessoa respondem, magicamente: “Não basta abrir a janela / Para ver os campos e o rio. / Não é bastante não ser cego / Para ver as árvores e flores.”

Lágrimas em jato turvam tudo. Choro no claustro, de pena da minha cegueira.

O imaginário das ruas


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 19/08/2011

Gosto de artes que definem ou reinventam espaços reais. Por exemplo: músicas e poemas sobre cidades, bairros, ruas. Quando transito por algum lugar que já tenha sido cantado ou contado antes, o imaginário sempre emerge como um começo de diálogo com tal território. É uma delícia flanar pelas ruas de Porto Alegre com a bússola do Quintana ou mergulhar no mar da Bahia sob as ondas do Caymmi. Não consigo transitar pelo cruzamento das avenidas Ipiranga e São João sem evocar a Sampa do Caetano. Ou caminhar pelo Recife sem atentar para os rios, pontes e overdrives do Chico Science.

O imaginário é poderoso. Não fossem os romances de Erico Verissimo, lidos na adolescência, posso quase garantir que jamais deixaria a Bahia para viver no Rio Grande do Sul. Muito do fascínio que sinto por Minas Gerais deve-se aos livros do Guimarães Rosa e às canções do Milton Nascimento. É bíblico: o verbo está no princípio. E quando este verbo vem embebido de uma prosa magistral ou de versos musicados, pronto: o mundo que ali se anuncia ganha ares míticos, espaço de fantasia, morada de deuses e heróis. A Baixa dos Sapateiros de hoje pode ser feia e suja, mas ali para sempre andará a morena mais frajola da Bahia – como quis Ary Barroso.

Na vibração do Tolstoi, falar da nossa aldeia é premissa para um alcance universal. A Caxias do Sul da obra de José Clemente Pozenato, em livro e filme, correu mundo. A cidade, assim, ganhou uma relevante cartografia mítica. Só acho que a moderna Caxias é pouco mapeada pelos seus artistas. Há muita nostalgia e memória e raro trato à bola contemporânea. Desconfio que possa haver aí um medo de se soar provinciano ou que falte mesmo amor pelo lugar em que se vive. Entre honrosas exceções, cito os versos urbanos do Dhynarte Albuquerque e as canções da Camila Cornutti. Mas é pouco.

Alô, poetas e músicos: já para as ruas! Há sonhos espalhados nas calçadas da Júlio, há juras de amor no Parque dos Macaquinhos, há delírios na Praça Dante, há pressa na Visconde e promessa na Garibaldi. Olhem: eis uma cidade enorme, ainda emudecida sobre a própria identidade.

domingo, 14 de agosto de 2011

O caso da coelha


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 12/08/2011

Diante de mim, no nervoso centro urbano, uma coelha segurava um cartaz com ofertas de uma financeira. Propaganda oportunista essa, que buscava na época da Páscoa o tema de seu reclame, fazendo a mocinha pagar o mico de parecer uma coelha na multidão. Uma tiara na cabeça segurava duas orelhas de pelúcia, combinando com a maquiagem no rosto e com um aventalzinho de bolotas. Pelo menos pouparam-na de um pompom no popô, o que daria ares maliciosos à personagem, certeiras alusões às coelhinhas da Playboy.

Eu olhei a cena, ri muito do ridículo da menina, e para compensar minha maldade até louvei sua disposição para o trabalho. Naquele sol da tarde, trabalhando honestamente, que beleza. Só que alguma coisa ali não funcionava, a fantasia não me convencia. Olhei-a de novo, saí pensando que a mocinha, por detrás do sorriso simpático, estava detestando aquele serviço. Eu logo julguei: vai ver foi só o que ela encontrou, uma coisa avulsa de entregar folhetos e segurar cartazes. Uma grana certa, mas um serviço para o qual ela não fora talhada. Tudo comum, tudo normal: nem sempre se faz o que se gosta. E esqueci da coelha.

Uma hora depois, voltando pela mesma rua, avistei outra vez a personagem. De novo sua performance de coelha me passou desconforto. Foi quando avistei, do outro lado da rua, outra jovem com igual fantasia. Obviamente, as duas eram colegas da mesma propaganda. Mas a de lá passava seriedade. Ali estava uma coelha de verdade! Havia entrega, havia verdade nela. Quando eu ia destilar desprezo pela má coelha, percebi no rosto dela o detalhe que certamente tinha detonado minhas conclusões sobre a fajutice de sua atuação: a moça usava óculos!

Quem vai acreditar numa coelha de óculos, se desde crianças nos dizem que cenoura, comida amada pelos roedores, é ótima para a visão? Bingo, coelho de óculos é pura contradição! Para me purgar do mau juízo, até peguei uns panfletos com a coelha míope. Tadinha. E segui pela rua refletindo sobre as tantas vezes em que nosso olhar capta mais do que a nossa consciência, alimentando apressadas associações e péssimas conclusões.

sábado, 6 de agosto de 2011

Olha a Lua!

Mais um vídeo do quadro Astrolábio, na UCS TV, desta vez sobre a Lua e seu fascínio.

Ele nasceu no mês do Leão

Neste domingo, 7 de agosto, é aniversário do Caetano, leão de fogo, um sol pai de toda cor na canção popular. Em homenagem a ele e aos leoninos, vai abaixo um clipe de O Leãozinho. Bem, as imagens são óbvias, mas a música, apesar de batida, permanece como um hino a este signo felino.

A mala invisível


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 05/08/2011

Mesmo o mais despachado viajante, o que carrega apenas o essencial numa mochila, mesmo esse sempre leva duas bagagens: uma visível, outra invisível. Há sempre uma “outra“ mala a nos acompanhar, presa com cadeado no armário de nossa mente. Nesta mala extra, levamos e trazemos coisas imateriais. É até óbvio constatar que costumamos voltar de viagem impregnados de inéditas emoções, aprendizados e iluminações. Viajar é oxigenar a alma. O problema é o que levamos desde casa, nessa mala simbólica.

Viagem é entrega, usufruto do novo, partilha do desconhecido. Queremos prazeres e aventuras para fora do nosso cotidiano, e é quando uma outra cultura, com diferentes paisagens e tipos humanos, nos fornece farto material a ser degustado. Estranheza, encantamento, rejeição ou assimilação serão reações possíveis, durante ou após a viagem.

Em tese, ninguém sai de casa se não quiser se abrir, relaxar, receber. Regressar com a mala invisível cheia é a glória de qualquer jornada. Só um porém: não é fácil sair com a tal mala totalmente vazia. Há bolsas secretas plenas de molduras e padrões. São nossos valores rígidos, nossos conceitos formados, nossos julgamentos – em outras palavras, nossos preconceitos.

Preconceito carregado – porque entranhado na mente – é feito entrada barrada em país estrangeiro. Um carimbo negativo, uma porta fechada por nós mesmos. Por que viajar se o tempo todo vamos procurar a mesma comida de casa e manter os mesmos hábitos e programações? Nossa moldura interna pode inutilizar a viagem. Não traremos nenhuma nova luz no espírito, por conta do excesso de bagagem de ida.

Essa questão, potencializada em viagens, é uma ampliação do nosso exercício de contato diário com o outro. Como acolhemos o outro em sua diversidade e originalidade? Que espaço abrimos para o que não faz parte de nosso mundo?

Ah, como seria perfeito se todos fossem iguais a nós... Mas aí não teríamos nada a oferecer nem a receber. Seríamos estátuas perfeitas, monumentos que os turistas de mala invisível vazia registrariam em fotografias. Curiosas imagens do que ficou parado no tempo.

Do angu à polenta


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 29/07/2011

Um pouco de água numa panela, uma pitada de sal, acrescenta-se farinha de mandioca aos poucos, mexendo sempre para não embolar, até a mistura ficar na consistência desejada, retira-se do fogo. E está pronto o angu, que muitos vão chamar de pirão. Eu sempre fui chegado num angu, coisa da infância, como um estágio posterior à papa primordial, mas com semelhanças. Minha mãe sabia desse meu gostar: naqueles agrados de convalescença de gripes e afins, lá vinha ela com um prato de angu e um bife com molho em cima.

Eu adorava espalhar o angu pelas bordas do prato, para esfriar, e ir comendo pelas beiradas. Ou então sulcava trincheiras por onde o caldo do bife escorria, delimitando regiões no maleável território do angu. Com essa comida lúdica, eu chegava a abrir mão do arroz com feijão para preferir um bom anguzinho como base. Tanto que ganhei do Osvaldo, um excêntrico primo do meu pai, o apelido de “menino do angu”. Angu e infância são indissociáveis para mim.

Em outras regiões do Brasil, o angu se faz com farinha de milho, como em Minas Gerais. E adivinhou quem enxergou nessa variação mais rústica a célebre polenta italiana. Angu de milho e polenta: tudo farinha do mesmo saco. Eu, que desconhecia a polenta mole e que tive com esse prato da culinária serrana uma identificação plena, já trazia na memória das papilas gustativas o efeito da variante angu. Adoro polenta mole e levo prejuízo quando a encontro nos bufês a quilo, porque, tão barata (no custo de produção) quanto pesada na balança, ela joga minha conta lá para cima. Mas quem mandou encher o prato, ó guloso?

Curioso é que, modos de preparo e caprichos à parte, a polenta trazida pelos imigrantes italianos já era comida no Brasil há séculos com o nome de angu. O milho é originário do continente americano e foi levado à Europa pelos navegadores vindos de lá, como o genovês Cristóvão Colombo. Por esse enfoque, polenta mole é o angu de volta às origens.

Agora vou me imaginar menino cavando um vale no prato de angu/polenta mole para inundá-lo com uma montanha de frango ao molho. O passado adora traçar destinos.

Mr. Allen


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 22/07/2011

Há quanto tempo adoro Woody Allen? Talvez desde meus 13, 14 anos, quando vi na televisão, numa seção coruja, o filme A Última Noite de Boris Grushenko, que é de 1975. Ainda na adolescência, sempre na tevê, conferi Bananas e O Dorminhoco. Fiquei mais que fã daquele cara irreverente, com seus inconfundíveis óculos, seus cabelos desgrenhados e um perfil entre o inteligente sutil e o trapalhão. Desde então, não perco um filme seu. Agora que assisti no cinema o mais recente, Meia Noite em Paris, percebo que sigo gostando demais dele. Aliás, em tempos de relações tão instáveis, chego a gostar mais de mim mesmo por sustentar há tanto tempo a mesma afeição devotada pelo Woody.

Não quero aqui fazer resenha de Meia Noite em Paris, pois sou suspeito, vou jogar confetes, um saco de confetes. Saí do cinema com uma idéia primeira para esta crônica: imaginar em que época da história e com que personagens eu gostaria de passar umas noitadas, na magia de viajar no tempo ao badalar de algum relógio à meia noite. No calor do filme, cheguei em casa e me atraquei no livro Conversas com Woody Allen, de Eric Lax, que aguardava minha atenção na estante há meses. São anos de entrevistas com Woody, sobre seu processo criativo, sua vida, seus amores, tudo, enfim. No livro vou conhecendo o homem por detrás do personagem, o trabalhador disciplinado por detrás da pinta de neurótico. Woody Allen é mais sério do que deixa transparecer!

Eu que sempre me perguntava como ele tira da cabeça tantas boas sacadas para fazer um filme atrás do outro, descobri no livro um fato notável: Woody anota todas as idéias que tem, todas mesmo, e as guarda numa sacola. Feito mágico, vive de tirar dessa cartola improvisada as cenas imaginadas muito antes. Cruza uma com outra, junta essa com aquela, e imagina que história pode acontecer. Uma idéia só cai fora quando realizada. Então o que eu pensava ser mera genialidade tem alta dose de rigor e cuidado?

Oh, acabou o meu espaço! Mas, lição aprendida, a idéia original para esta crônica está devidamente anotada. Qualquer dia puxo ela da caderneta. Thanks, mestre Allen.