Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
Crônicas portuguesas 3: curta-metragem gótico
Nivaldo Pereira
Publicada no Pioneiro, 27/03/2009
Quantos anos teria ela? Talvez 17. Dentes para fora, olhos sonolentos e muitas espinhas no rosto anguloso contribuíam para a primeira impressão: era uma garota muito feia. Estava na parada de ônibus onde eu e meu amigo chegamos, no centro da cidade de Porto, com as calças ensopadas pela chuva fria açoitada por um vento que a toda hora virava nossos guarda-chuvas. Foi assim que Porto me recebeu, eu vindo de trem de Lisboa: com céu borrascoso e ventania gelada. Meu amigo esperava-me na estação. Deixei o mochilão na casa dele, e fomos dar uma banda no centro, tagarelando nossa paixão comum pelo cinema. Passeio abortado pelo clima, melhor ver um filme em casa. E encontramos a mocinha medonha naquela medonha noitinha.
Ela encarou-nos separadamente, feito hipnotizadora, de olhos fixos. E puxou conversa com meu amigo, eu de platéia. Dúvida sobre o número do ônibus que passava no bairro dela, a demora, o mau tempo. Aí ela tirou da bolsa um DVD e mostrou: “Ao menos ter vindo à cidade valeu por achar este filme”. Era Hellboy 2. Meu amigo comentou o primeiro filme, legal, coisa e tal. E ela: “Mas eu gosto mesmo é do Val Helsing, porque reúne os monstros clássicos”. E disse que tinha uma miniatura de um castelo assombrado, que costumava por na janela do quarto. Meu amigo deu corda: “É para afugentar os fantasmas?”. Ela, em sotaque português: “Ou para convidá-los, não sei bem.”
Eu estava achando o máximo aquele curta-metragem insólito sobre cinema de horror no sombrio cair da noite sobre Porto. A garota feia prosseguiu: “Conhecem os irmãos gêmeos? Há sempre um bom e outro mau. Eu sou assim, este é meu signo. Nem sempre sou boazinha, tem dias que sou muito malvada.” Corte abrupto na narrativa: o ônibus esperado por ela chegava. Sem dar tchau, seguiu a pequena fila para entrar, encarando as pessoas, como havia feito a nós. Rimos da figuraça. Geminiana, como eu, luzes e sombras na alma, dialética e humor como salvação.
Dia seguinte, ao sair para trabalhar, meu amigo acordou-me anunciando um surpreendente sol em céu azulão lá fora. E eu saí para viver outros filmes.
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