Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
Crônicas portuguesas 2: Fados
Nivaldo Pereira
Publicada no Pioneiro, 17/04/2009
Viagem feita jamais cessa de recomeçar. Pois sempre surge a memória, liberta do passado, a recriar a viagem a cada evocação, ampliando-a, recortando-a de mil maneiras, lançando-me outra vez na estrada. Por isso, não sigo a pressa de fixar o já vivido em trânsito num jorro contínuo de confissões. Busco, sim, ruminá-lo devagar, qual boi manhoso que, na aprazível noitinha do curral, degusta sabores inéditos nas dobras sutis do capim engolido displicentemente na voragem do dia. Na bovina languidez do agora, o cheiro de pão torrado na vizinhança me conduz ao odor similar da cozinha do albergue em Lisboa. E a viagem se reinventa, no café matinal entre estrangeiros como eu.
Passo manteiga na fatia torrada de pão. Os ouvidos fisgam a voz de uma jovem ajudante da cozinha ao lado. É uma negra retinta e bonita – pelo sotaque, certamente vinda de alguma ex-colônia portuguesa na África. Volta e meia pergunta à colega de cozinha – esta, sim, portuguesa – como se diz alguma coisa. Há forte lamento no tom da negra. O que se confirma na primeira frase que escuto inteira: “Sofro por causa daquele homem desde meus 15 anos de idade”. Espicho todas as minhas 800 orelhas. Ela desfia seus infortúnios. Era mocinha, inocente, e mesmo assim o pai a expulsou de casa, quando soube do romance dela com o tal homem. Chovia torrencialmente, a noite era tão escura que nada se podia ver no caminho. Ela saiu andando, na lama, chorando, com medo dos raios...
Um hóspede interrompe o relato, pedindo mais leite. Fico fazendo hora, querendo o fim da história. Mas a negra se cala. E eu saio à rua. Vou da Baixa ao Chiado, onde ouço, numa ladeira, a voz de Amália Rodrigues a entoar um fado pungente. A canção sai de um quiosque de discos, bem na rua. Dias depois, vejo no documentário Fados, de Carlos Saura, que o ritmo português nasceu da troca cultural havida com a gente vinda das colônias de África e Brasil. Assim, brasileiro, adiciono ao fado real da negra e ao canto de Amália, meu herdado dom de ser um sentimental. E a viagem se redesenha em fragmentos de lusitana saudade, a compor inesperados azulejos.
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