Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Minha doce flauta doce


Nivaldo Pereira

Crônica publicada no Pioneiro, 02/09/2011

Tentava me concentrar num livro. Era cedo para entregar-me ao sono, sob o risco de acordar pouco depois e não dormir mais. Foi quando um som da vizinhança me ligou inteiro. Flauta doce. Algum iniciante praticava o instrumento, entoando obras já clássicas para esse aprendizado, como Noite Feliz e Asa Branca. As canções soavam mais lentas, com direito a derrapadas nas notas, típico de quem ainda não tem a destreza dos dedos nos furos da flauta. O que me despertou não foi bem a cadência musical: foi a memória.

Vi-me outra vez com 16 anos, quando cismei de tocar flauta doce. Havia no ar ecos tardios da geração hippie – e eu trazia na lembrança uma cena de anos antes: praia isolada de Salvador, um cabeludo sob um coqueiro, uma mochila surrada de lado, ele tocando uma flauta, um riacho límpido correndo para o mar. A flauta do hippie parecia ser uma varinha mágica, batuta de maestro que orquestrasse os demais elementos naquele quadro de paz e amor.

Aos 16, nas tensões de perda da inocência e na ânsia de viver música, talvez fosse natural esse remoto apelo da flauta mágica. Pois era de paz e amor a visão de uma colega recostada numa árvore, na hora do recreio, entoando com desenvoltura Jesus, Alegria dos Homens. Fissurei no ato. Onde você comprou? Quanto custou? Como aprendeu? Deixei de merendar por um mês, andei a pé, até juntar o dinheiro para minha flauta. Marca Heringer, amarelinha. A colega emprestou-me o primeiro volume do livro Minha Doce Flauta Doce. E minha vida mudou.

Em casa, não queria saber de mais nada que não fosse praticar a flauta. Era o máximo identificar as notas na partitura, os acordes, até os chatos bemóis e sustenidos. E infernizava o povo com meus treinos. Logo veio o segundo volume do livro. E eu já me exibia tocando Imagine, sem partitura. Um luxo.

Já nem sei em que momento a minha doce flauta doce foi morar de vez num fundo de gaveta. Perdeu-se, como tanta coisa bonita na vida. Agora, tantos anos depois, um som de flauta da vizinhança me tirou o sono. Oh, sentimentos difusos! Nessas horas, como seria bom poder tocar um instrumento...

Nenhum comentário:

Postar um comentário