Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Da vida das andorinhas


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 25/11/2006

Escutei o chilreio mais perto que nunca, vindo exatamente da minha janela. Eram três passarinhos, que logo identifiquei como andorinhas. Antes que voassem, ariscas, com a minha aproximação, e desenhassem no ar as piruetas espetaculares típicas da espécie, pude me surpreender com o tamanho delas. Tão pequeninas! Foi aí que eu percebi que o máximo de intimidade que eu me permiti ter com as andorinhas tinha sido nas espiadas de debaixo dos fios da rede elétrica, quando elas pousam num espaçamento que lembra notas musicais escritas numa partitura. Sempre tão poéticas, as andorinhas. Fiquei da janela acompanhando os rasantes das três no vão entre edifícios do centro da urbe. Assim, mais de longe, elas pareciam muito maiores, com asas e cauda na forma aerodinâmica que propicia tais evoluções precisas no espaço. Súbito, me veio o estalo: andorinha é bem mais andorinha quando voa.

Deixei a janela, na esperança de que elas voltassem a confiar na segurança do meu parapeito e eu pudesse examiná-las de perto em meu inusitado interesse de ornitólogo de ocasião. Mas qual! Depois de uma meia dúzia de mergulhos no ar da tardinha morna, o trio sumiu no rastro das nuvens primaveris. Não lamentei muito a despedida: eu já tinha sido irrevogavelmente tocado por essas avezinhas, como se tivesse recebido um recado. Faltava decifrar tal mensagem, já elevada à condição de um mágico augúrio, cifrado como convém a comunicações dessa natureza. Na facilidade das enciclopédias virtuais, saí em busca de dados sobre as andorinhas. Soube então que se diferenciam dos demais pássaros pelas adaptações corporais que propiciam a elas a alimentação em pleno vôo. Andorinhas caçam insetos no ar, por isso desenvolveram um corpo fusiforme e asas longas e pontiagudas, além de uma cauda também em ponta. Andorinhas comem enquanto voam. Porque andorinhas foram feitas para voar.

Outra característica delas, e talvez a mais marcante, é a condição de ave migratória. Andorinhas cruzam espaços inimagináveis, de norte a sul do globo terrestre, somente para ciclicamente fugir do frio. Vivem em busca da eterna primavera, e a esta estação anunciam nos dois hemisférios. Essa condição de mensageiras da estação das flores dota as andorinhas de uma simpatia unânime entre os povos da Terra. São sempre bem-vindas, pois avisam que o tempo ameno chegou e que, para alegria dos agricultores, ajudarão a dar conta das nuvens de insetos que a primavera também faz aparecer. Elas fazem seus ninhos em beirais e desvãos, com palha e barro, suficientemente seguros para acomodar os novos filhotes, que estarão prontos para a partida, junto com os pais, tão logo o outono chegue com seu bafejo gelado de inverno iminente. No ano seguinte, lá estarão elas, de volta, fazendo ninhos nas mesmas vizinhanças em que nasceram. É bastante curiosa essa fixação com a origem, em se tratando de aves migratórias que vivem de voar, voar.

Depois de olhar fotografias com diferentes espécies de andorinhas e de examinar as espantosas rotas que elas cruzam em torno do planeta, desliguei o computador e voltei à janela, pela qual o crepúsculo invadia a sala com seus tons de laranja e rosa. Nem sinal daquelas andorinhas que pousaram no parapeito, revelando a mim corpos diminutos e graciosos, mas potentes e ágeis a ponto de garantirem a travessia aérea de um pólo a outro da Terra. Minha pesquisa na rede virtual não garantiu uma elucidação do suposto recado cifrado das três andorinhas em minha janela. Não matei a provável charada da natureza, se é que ela chegou a haver, senão em minha cabeça sedenta de maravilhas. Mas ali, no poente virando noite, quis perseguir o mistério resistente e fiquei a cismar sobre o real. Logo mais o noticiário da televisão anunciaria as coisas importantes: decisões governamentais, escândalos, tragédias humanas e naturais, crimes e a previsão do tempo. Enquanto isso, andorinhas estariam pousadas nas antenas dos telhados, indiferentes a tudo o que não fosse primavera e vida.

Vida de andorinha é tão simplesinha, que o poeta Manuel Bandeira lhe deu voz a dizer que uma andorinha passara o dia à toa, à toa. Se o estar à toa de andorinha é amplificar-se em corpo e alma no ar do vôo, então, meu caro poeta, bom mesmo é a condição de passar a vida à toa, à toa, talvez em busca da primavera que deve ser eterna em sua Pasárgada. Antes que a noite invadisse por completo a sala e eu tivesse que acender as luzes, cuidar da vida e talvez ligar a televisão para saber do real, olhei para o céu do ocaso e disse em pensamento: voa, andorinha, e me ensina que é o vôo que dá grandeza ao homem. Assim, deixei que um eu de mim saísse janela afora e fosse voar, em tamanho aumentado de cauda e asas, por sobre os telhados da cidade. E até agora, esse eu não voltou para casa...

Nenhum comentário:

Postar um comentário