Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
quinta-feira, 3 de março de 2011
Contos astrais: Peixes
Nivaldo Pereira
Publicado no jornal Pioneiro, 2005
Mais uma taça de vinho. A quarta. É sempre assim, neste mesmo bar: você acha demais pedir uma garrafa inteira de vinho, mas bebe taças avulsas o suficiente para encher duas garrafas, ou mais. Tudo bem, irmãozinho, esse é só um dos seus inúmeros auto-enganos. Vamos lá, pegue o bloco de papel na bolsa de lona e comece a escrever. Você prometeu que desta vez iria registrar a onda de sentimentos tão logo ela se instalasse. E ela já está aí, lhe deixando assim, com esse ar apatetado, achando mágico o ambiente enfumaçado do bar. Você é indiferente ao samba de má qualidade que o cantor faz ecoar e aos requebros sem estilo dos que não sabem sambar. São todas tentativas de ser feliz, e você compara esse alarido entre a névoa dos cigarros a uma sinfonia sublime. Mas agora escreva, por favor.
“Senhor Deus dos desgraçados! Tomo emprestado o brado do poeta de outrora porque me falta a oratória necessária para te invocar. Sei que deve ser heresia dar um tom de oração a esse desabafo meu, que reconhecidamente surge alimentado da minha embriaguez, mas é que nunca me sinto assim tão perto de ti, Senhor Deus, quanto nessas horas em que a consciência se dilui no torpor da taça e eu me percebo irmão de toda essa gente. A vida ordinária corre e escorre lá fora, no bater dos relógios, na velocidade dos automóveis e na pressa das pessoas, enquanto aqui, entre companheiros de êxtase, eu entro numa dimensão que sei profana, mas que, paradoxalmente, me revela tua face, ó Deus. Meu coração se inunda dessa alegria estranha, feito um estar à vontade entre sofredores, numa sintonia que por si só já atenua as dores de cada um. Sei que meu maior pecado talvez seja esse, o de me sentir bem em meio ao que o mundo repudia, aqui nesse universo paralelo de bêbados, viciados, solitários, rejeitados e frios de afeto...”
“Repara, ó Deus, a beleza doída de cada filho teu, nesse cubículo que os de lá de fora chamam de antro. Cada semblante carrega uma tristeza, e essa tristeza espelha toda as dores do mundo. Mas aqui não há pranto, ao menos hoje, ao menos agora, no embalo dessa música e desse vinho. Porque cada um de nós procura resistir, buscando uma luz qualquer, um bálsamo de anestesia que prometa um paraíso longe ou perto. Eles me deixam em paz, porque sabem que sou um deles. Devo parecer um pensador excêntrico, um intelectual desiludido, daí meus apelidos de mestre e professor. Muitas vezes, e sabes disso, Senhor, varei madrugadas com alguns deles, inebriado de venenos, recusando o dia nascente e eternizando o brilho de uma paz que sabemos ilusória. Sei que sou fraco e por isso me culpo. É nessas horas que me flagelo, quando me percebo sem forças e me puno por isso. É quando vejo minha mãe trabalhando, mesmo aposentada, como enfermeira, gastando suas noites a cuidar dos doentes no hospital e rogando a Deus que esse filho cruel tome jeito e deixe de se destruir. Merda! Já me disseram e eu mesmo sei: não mereço a mãe que tenho. Talvez também não mereça o pai que nunca tive. Nem meu irmão distante. E nem a mulher que ainda amo e que me deixou por não suportar minhas fugas ao reino das fraquezas humanas. Garçom, careço de outra taça, urgente! Preciso de um tempo.”
“A taça é mulher. As formas arredondadas, a abertura para a boca, o deleite. Taça é fonte do néctar de Dionísio, a abrir portas no invisível. Desçam os deuses, os orixás, e venham rodopiar, brindar nessa festa de todos. Júlia está linda hoje. A noite terminou cedo para ela, deve ter sido culpa da chuva. Júlia confia em mim, me beija na boca sem desejo. Tem uma cicatriz no pescoço: navalha de um antigo cafetão. Ela volta feliz do banheiro, limpando o nariz, sorrindo para o Pimenta, sinal de aprovação. O Pimenta sempre aparece no bar por essa hora, trazendo o alimento dos desesperados. Não, Pimenta, hoje não. O vinho me basta. Outra taça, Jorge. Entra Liz, de penteado novo, me jogando um beijo. Liz tem sexo indefinido, ou todos os sexos do mundo, como ela gosta de dizer. Certa vez me pediu um poema para ela. Eu fiz. Um acróstico, de três versos. Disse que ia emoldurar. É bom esse vinho. Talvez eu dance um pouco, mas bebi pouco para tanto.”
“Crazy acena. Ele canta na noite, acabou o show por lá, e sempre vem bater aqui, na igreja final de todos os bêbados. Crazy lembra Lou Reed. Já pedi que ele aprendesse a cantar Perfect Day, mas disse que inglês é complicado. A fauna se renovou de repente. Foi embora a primeira leva. Daqui para adiante é a escória, a catrefa, o lixo, a gentalha, as moscas de todos os botecos. Eu me sinto em casa, entre os meus. Tenho em mim um pedacinho de cada um desses miseráveis. Baixa uma neblina lá fora. As luzes embaçadas lembram peixinhos coloridos num aquário. Esse tipo de clima me deixa confortável. Confortable Numb, como diria o velho Pink. Nessas horas me baixa o poeta. Luz de Liz é mais embaixo. Era assim o primeiro verso do tal acróstico. A saideira, Jorge. Creo que estoy borracho. En estas ocasiones me gusta hablar español. Ahora soy feliz. Sei quem sou. Sou todo mundo. Vejo Deus na cara de Júlia. No desalento crônico de Crazy. Na benemerência nociva do Pimenta. Chega! Blasfemo blasfêmias. A saideira, Jorge. NÃO. Pelo Senhor Deus dos desgraçados, chega!”
Chega mesmo, irmãozinho. Pendure a conta e saia, antes que ceda ao apelo tentador de se inebriar ainda mais. São quatro quadras até em casa. Vamos andando na bruma. Volte a imaginar que conversa comigo, seu gêmeo que se retirou do mundo para um mosteiro do Nepal, seu irmão que lhe protege. Pense na mãe. Pense em mim, seu anjo da guarda. E vá dormir em paz. Sua alma é boa, você sente isso. E ainda aprenderá a suportar o esplendor dolorido dela. Agora caminhe devagar, sem tropeços. Quem sabe amanhã mesmo seja um bom dia para voltar a pintar.
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