Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
domingo, 25 de setembro de 2011
Porque hoje é primavera
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 23/09/2011
Extra, extra!: a Terra, nave da nossa viagem pelo céu, logo na manhãzinha desta sexta-feira, 23 de setembro de 2011, às 6h05min, chegou ao ponto em que permite ao Sol irradiar com igual intensidade sua luz para o globo inteiro. Como ficar imune a esse decreto cósmico de partilha e justiça?
O inverno no Sul se despede. O calor vai chegando manso, fecundo, despertando toda a natureza da fase de recolhimento. A passarada reaparece em cantorias incessantes, machos e fêmeas vibram alegremente no cortejo de acasalamento. Trinados melodiosos são relógios da vida. Como ficar surdo a esse encantado despertador?
As árvores que se desfolharam no frio respondem ao clima de ressurreição numa brotação de verdes espetaculares. Galhos e troncos vestem-se dos tons que a poesia dos homens costumou associar à esperança. Ainda que meio cegos pelo cinza das cidades, como não deixar que a imaginação busque motivos para surpresas libertadoras?
Do mais humilde arbusto à imponente araucária, do musgo da grota ao capim que faz cocurutos nas ondulações dos morros, dos cravos silvestres às roseiras de estufas, de tudo exala odores inebriantes, aromas de desejos de viver, perfumes do existir. Como não abrir o peito e aumentar a inspiração com esse ar regenerador?
A luminosidade, num crescente, irradia o calor que inutiliza carapaças e casulos; casacos e capas voltam para o recôndito dos armários; a pele quer se sentir nova no arrepio de brisas e quenturas, o corpo todo se estica, como se clamando por também ser tocado, qual instrumento, pela regência solar. Como não espichar também o raio de todos os nossos alcances?
Por entre beijos de abelhas no néctar, bicadas sugadoras de colibris, ciscar de aves em chão de insetos, ansiar de bichos fora das tocas, tudo parece querer comida, querer cor e frescor. Como não saciar essas e outras fomes do bicho humano?
E a primavera neste ano se inicia junto com a luz do dia, em clima potente de nascer do Sol. Como negar esse duplo impulso de recomeço, se a vida toda é um só empurrão para fora, para além, para adiante?
Ei, vocês vão ficar aí, parados?
sexta-feira, 16 de setembro de 2011
Até o próximo parto
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 16/11/2011
No jornal Pioneiro, já escrevi quase 600 crônicas, em mais de 11 anos. É texto a dar com pau. Esse inventário, à guisa de making-of, primeiramente atende a um velho gosto meu pela metalinguagem. Volta e meia, estou a falar da crônica na própria crônica, de sua estrutura e intenções, de sua composição. É cíclica essa motivação, sem que eu a planeje. Isso porque aprecio a forma do texto, a mancha gráfica das letras impressas no papel, e também gosto das entrelinhas, dos bastidores das idéias.
Mas, se outra vez disponho-me a falar do ato de escrever a crônica, e se já começo fazendo as contas da produção acumulada, não será para me sentir um veterano no oficio – embora uns me vejam nessa condição. Pelo contrário, será para reiterar a angústia que me toma antes da escrita. Sempre.
Já me disseram que meu texto flui, como se fruto de um jorro espontâneo da mente, ao sabor dos dedos ágeis no teclado. Não pode haver impressão mais errada. Escrever, para mim, é sempre um sofrimento. E dedos ágeis? Eu cato milho até hoje...
Tem cabimento um marmanjo com quase 600 crônicas nas costas ainda querer fugir antes de começar uma nova? Pois é o que acontece comigo. Por força de duas senhoras gordas e espaçosas que moram dentro de minha neurótica cabeça: Dona Autocrítica e Dona Expectativa. Não sou daqueles caras que chegam em casa tomados de inspiração e correm ao computador para escrever. Se a inspiração vem, eu espero ela passar!
Tampouco uso meu tempo livre para escrever o que for. Escrevo por obrigação. Sem a pressão do prazo, não sai uma linha desses dedos. Tenho coisas melhores a fazer do que sofrer diante de um teclado. É por isso que me causa desconforto ser chamado de escritor. Ah, tá, escritor! Fala sério...
Agora, amigo leitor, já lhe ouço perguntar por que diabos insisto nesse ofício. É porque, vencido o início paralisante, tendo calado as matracas das duas gordas, é puro tesão terminar um texto. A sensação é de recompensa. É como dar à luz um ser. Aliás, acho que entendo as mulheres quando alardeiam a insuportável dor do parto, mas não se negam à próxima gestação.
Um beijo do amor
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 09/11/2011
Eu jantava num restaurante com um amigo, quando senti o toque macio em meu ombro. Antes que me virasse, recebi um beijo na face e ouvi uma voz infantil dizer “tchau”. Era uma menina loirinha, de uns cinco anos, com os traços da Síndrome de Down. Ela foi ao outro lado e repetiu a ação com meu amigo: um beijo, tchau. Fez o mesmo com mais umas três pessoas de outras mesas, enquanto a família a esperava, a caminho da saída. Dissemos tchau, acenamos, todos tocados e desconcertados com aquela súbita demonstração de um carinho tão inocente quanto incondicional.
Não houve tempo de perguntar-lhe o nome, a idade, comentar qualquer coisa. Apenas trocamos olhares cúmplices com a família da menina, um tanto de embaraço nosso, muito de simpatia deles, na mútua compreensão de quem sabe que o amor às vezes aparece assim, puro, generoso, incondicional.
Não havia na atitude deles o mínimo sinal de um talvez pedido de desculpas pelo provável incômodo. Nenhum meneio de cabeça reprovador a indicar obediência às convenções sociais que pressupõem limites definidos entre nosso espaço e o do outro. Aquela família já tinha sido tocada e transformada pelo amor irradiante da menina. Já era, também, toda amor. E foi com olhos afetivos e sorrisos que aquelas pessoas pareceram nos dizer: nosso anjo bom escolheu vocês para um beijo, uma bênção.
Eu e meu amigo não comentamos a chegada inesperada da garotinha. Seguimos o papo interrompido, mas impossível negar que algo de especial tinha acontecido. Pouco antes, tínhamos feito voltar a pizza, que viera além do ponto. Há que se estar atento aos próprios direitos. Há que se estar na defensiva. Sempre de armas em riste, couraças, armaduras. Aí, um beijo anônimo vem e nos desarma.
A nova pizza chegou, no ponto exigido, comemos em silêncio. E ficamos meio aéreos, dispersos, olhando as caras, as mesas cheias das ânsias da noite de sábado. Era até cedo, mas logo decidimos ir para nossas casas.
Eu só queria dormir, me entregar no colo da vida. Só queria sonhar na graça de um amor que, feito chuva repentina, inunda-nos de bondade e esperança no futuro.
segunda-feira, 5 de setembro de 2011
Minha doce flauta doce
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 02/09/2011
Tentava me concentrar num livro. Era cedo para entregar-me ao sono, sob o risco de acordar pouco depois e não dormir mais. Foi quando um som da vizinhança me ligou inteiro. Flauta doce. Algum iniciante praticava o instrumento, entoando obras já clássicas para esse aprendizado, como Noite Feliz e Asa Branca. As canções soavam mais lentas, com direito a derrapadas nas notas, típico de quem ainda não tem a destreza dos dedos nos furos da flauta. O que me despertou não foi bem a cadência musical: foi a memória.
Vi-me outra vez com 16 anos, quando cismei de tocar flauta doce. Havia no ar ecos tardios da geração hippie – e eu trazia na lembrança uma cena de anos antes: praia isolada de Salvador, um cabeludo sob um coqueiro, uma mochila surrada de lado, ele tocando uma flauta, um riacho límpido correndo para o mar. A flauta do hippie parecia ser uma varinha mágica, batuta de maestro que orquestrasse os demais elementos naquele quadro de paz e amor.
Aos 16, nas tensões de perda da inocência e na ânsia de viver música, talvez fosse natural esse remoto apelo da flauta mágica. Pois era de paz e amor a visão de uma colega recostada numa árvore, na hora do recreio, entoando com desenvoltura Jesus, Alegria dos Homens. Fissurei no ato. Onde você comprou? Quanto custou? Como aprendeu? Deixei de merendar por um mês, andei a pé, até juntar o dinheiro para minha flauta. Marca Heringer, amarelinha. A colega emprestou-me o primeiro volume do livro Minha Doce Flauta Doce. E minha vida mudou.
Em casa, não queria saber de mais nada que não fosse praticar a flauta. Era o máximo identificar as notas na partitura, os acordes, até os chatos bemóis e sustenidos. E infernizava o povo com meus treinos. Logo veio o segundo volume do livro. E eu já me exibia tocando Imagine, sem partitura. Um luxo.
Já nem sei em que momento a minha doce flauta doce foi morar de vez num fundo de gaveta. Perdeu-se, como tanta coisa bonita na vida. Agora, tantos anos depois, um som de flauta da vizinhança me tirou o sono. Oh, sentimentos difusos! Nessas horas, como seria bom poder tocar um instrumento...
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