Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Ainda a bandeira


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 26/11/2010

Vou seguir refletindo sobre a bandeira nacional. É o símbolo maior de nosso Brasil, um país que precisa ser descoberto para ser aceito, para ser amado. Não podemos sentir a tal brasilidade e nos comover com a bandeira somente “nos momentos de festa e de dor”, como diz o hino. Ou seja, quando a bandeira encobrir o ataúde de algum ídolo das massas, feito Ayrton Senna, ou quando o capitão da seleção brasileira levantar a taça da vitória na Copa do Mundo. Precisamos ser brasileiros principalmente na hora de reconhecer nossos erros, sem deformados orgulhos. E não é que um traço arrogante também está na bandeira? Querem ver?

Quando foi oficializada a atual bandeira, a 19 de novembro de 1889, um destaque foi a representação, no círculo azul, do céu visto no Rio de Janeiro às 8h30min do anterior dia 15, quando foi proclamada a República. Ali estão estrelas de constelações como Cão Maior, Virgem e Escorpião, além do Cruzeiro do Sul. Tudo lindo e poético, não fosse por um detalhe: o céu aparece desenhado não na nossa perspectiva, mas ao contrário, como se visto num espelho ou como se a bandeira estivesse pelo avesso.

Não se sabe de quem foi o erro. O que se sabe é que ele nunca foi corrigido. Em 1971, durante o regime militar, uma lei que dispunha sobre os símbolos nacionais explicava que as constelações “devem ser consideradas como vistas por um observador situado fora da esfera celeste”. Mas quem seria esse observador? Algum ET, em outra galáxia? Ou Deus, no infinito? Não seria mais sensato corrigir o erro secular e termos na bandeira um céu como o vemos do Brasil?

Pois é, está simbolizado no pavilhão nacional o que chamei de traço arrogante do brasileiro. Inventamos desculpas, fazemos arranjos e nos defendemos, para não assumir os próprios erros. E ainda temos a cara-de-pau de dizer que somos humildes! Algum místico pode pensar que, enquanto não corrigirem o céu da bandeira, teremos essa visão invertida, ou distorcida, de nós mesmos. Eu prefiro dizer que precisamos nos aceitar como somos, com aleijões morais e tudo. Sem essa condição, não mudamos. Nada muda.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Bandeira sem amor


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 19/11/2010

Na memória, uma aula de Educação Moral e Cívica, na década de 1970. Qual o dia da bandeira? Dezenove de novembro, professora. Agora, quem sabe o nome do poeta que fez a letra do Hino à Bandeira? Olavo Bilac, professora. Isso mesmo. Olhem a beleza desses versos do refrão: “Recebe o afeto que se encerra, / Em nosso peito juvenil, / Querido símbolo da terra, / Da amada terra do Brasil.” Todos aqui amam o Brasil? Siimm. Claro que sim! Naquele tempo, a regra era clara: Brasil, ame-o ou deixe-o.

Ainda os versos de Bilac no hino: “Sobre a imensa Nação Brasileira, / Nos momentos de festa ou de dor, / Para sempre, sagrada bandeira, / Pavilhão da Justiça e do Amor!” Justiça e amor? Tudo bem, falta muito, mas estamos a caminho. Irônico é saber que logo na criação da nossa bandeira foi feita uma injustiça ao amor. A faixa branca ao centro deveria conter o lema positivista: “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim” Frase longa. Abreviaram para “ordem e progresso”, o amor ficou de fora. Por que não “amor, ordem e progresso”?

Talvez não coubesse mesmo o amor no pavilhão de uma nação forjada em modelos autoritários, acostumada a golpes e desmandos dos poucos que, desde a origem, detêm o poder. Nesse padrão, até o amor é imposto: ame o Brasil ou deixe-o. E seguimos cheios de amor clandestino, encerrado em nossos peitos. Amamos de menos o que somos, amamos demais o que não temos. Amamos sem ordem, à margem do progresso. Somos amáveis em demasia: eis nossa delícia e nossa dor.

Corta rápido para Bruxelas, em 2009. Sentado, esperando o trem para Amsterdã, apoiei o mochilão de turista entre as pernas. Em frente, um menino de uns cinco anos passeava, enquanto a mãe falava ao celular. O guri arregalou os olhos, quando percebeu, em minha mochila, uma bandeira brasileira bordada. “Olha, mãe, Brasil, Brasil!”, saiu gritando. Eles eram brasileiros, vivendo na Europa. A mãe não veio ver. Eu e o guri nos olhamos, cúmplices de um afeto difícil de traduzir em nossos peitos juvenis. Naquele breve instante, fomos irmãos. E a grandeza da pátria vibrou em nossos corações.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Da vida das andorinhas


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 25/11/2006

Escutei o chilreio mais perto que nunca, vindo exatamente da minha janela. Eram três passarinhos, que logo identifiquei como andorinhas. Antes que voassem, ariscas, com a minha aproximação, e desenhassem no ar as piruetas espetaculares típicas da espécie, pude me surpreender com o tamanho delas. Tão pequeninas! Foi aí que eu percebi que o máximo de intimidade que eu me permiti ter com as andorinhas tinha sido nas espiadas de debaixo dos fios da rede elétrica, quando elas pousam num espaçamento que lembra notas musicais escritas numa partitura. Sempre tão poéticas, as andorinhas. Fiquei da janela acompanhando os rasantes das três no vão entre edifícios do centro da urbe. Assim, mais de longe, elas pareciam muito maiores, com asas e cauda na forma aerodinâmica que propicia tais evoluções precisas no espaço. Súbito, me veio o estalo: andorinha é bem mais andorinha quando voa.

Deixei a janela, na esperança de que elas voltassem a confiar na segurança do meu parapeito e eu pudesse examiná-las de perto em meu inusitado interesse de ornitólogo de ocasião. Mas qual! Depois de uma meia dúzia de mergulhos no ar da tardinha morna, o trio sumiu no rastro das nuvens primaveris. Não lamentei muito a despedida: eu já tinha sido irrevogavelmente tocado por essas avezinhas, como se tivesse recebido um recado. Faltava decifrar tal mensagem, já elevada à condição de um mágico augúrio, cifrado como convém a comunicações dessa natureza. Na facilidade das enciclopédias virtuais, saí em busca de dados sobre as andorinhas. Soube então que se diferenciam dos demais pássaros pelas adaptações corporais que propiciam a elas a alimentação em pleno vôo. Andorinhas caçam insetos no ar, por isso desenvolveram um corpo fusiforme e asas longas e pontiagudas, além de uma cauda também em ponta. Andorinhas comem enquanto voam. Porque andorinhas foram feitas para voar.

Outra característica delas, e talvez a mais marcante, é a condição de ave migratória. Andorinhas cruzam espaços inimagináveis, de norte a sul do globo terrestre, somente para ciclicamente fugir do frio. Vivem em busca da eterna primavera, e a esta estação anunciam nos dois hemisférios. Essa condição de mensageiras da estação das flores dota as andorinhas de uma simpatia unânime entre os povos da Terra. São sempre bem-vindas, pois avisam que o tempo ameno chegou e que, para alegria dos agricultores, ajudarão a dar conta das nuvens de insetos que a primavera também faz aparecer. Elas fazem seus ninhos em beirais e desvãos, com palha e barro, suficientemente seguros para acomodar os novos filhotes, que estarão prontos para a partida, junto com os pais, tão logo o outono chegue com seu bafejo gelado de inverno iminente. No ano seguinte, lá estarão elas, de volta, fazendo ninhos nas mesmas vizinhanças em que nasceram. É bastante curiosa essa fixação com a origem, em se tratando de aves migratórias que vivem de voar, voar.

Depois de olhar fotografias com diferentes espécies de andorinhas e de examinar as espantosas rotas que elas cruzam em torno do planeta, desliguei o computador e voltei à janela, pela qual o crepúsculo invadia a sala com seus tons de laranja e rosa. Nem sinal daquelas andorinhas que pousaram no parapeito, revelando a mim corpos diminutos e graciosos, mas potentes e ágeis a ponto de garantirem a travessia aérea de um pólo a outro da Terra. Minha pesquisa na rede virtual não garantiu uma elucidação do suposto recado cifrado das três andorinhas em minha janela. Não matei a provável charada da natureza, se é que ela chegou a haver, senão em minha cabeça sedenta de maravilhas. Mas ali, no poente virando noite, quis perseguir o mistério resistente e fiquei a cismar sobre o real. Logo mais o noticiário da televisão anunciaria as coisas importantes: decisões governamentais, escândalos, tragédias humanas e naturais, crimes e a previsão do tempo. Enquanto isso, andorinhas estariam pousadas nas antenas dos telhados, indiferentes a tudo o que não fosse primavera e vida.

Vida de andorinha é tão simplesinha, que o poeta Manuel Bandeira lhe deu voz a dizer que uma andorinha passara o dia à toa, à toa. Se o estar à toa de andorinha é amplificar-se em corpo e alma no ar do vôo, então, meu caro poeta, bom mesmo é a condição de passar a vida à toa, à toa, talvez em busca da primavera que deve ser eterna em sua Pasárgada. Antes que a noite invadisse por completo a sala e eu tivesse que acender as luzes, cuidar da vida e talvez ligar a televisão para saber do real, olhei para o céu do ocaso e disse em pensamento: voa, andorinha, e me ensina que é o vôo que dá grandeza ao homem. Assim, deixei que um eu de mim saísse janela afora e fosse voar, em tamanho aumentado de cauda e asas, por sobre os telhados da cidade. E até agora, esse eu não voltou para casa...

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A bênção, Vinicius


Poeta, diplomata, crítico de cinema, jornalista, cantor, compositor, dramaturgo, viajante, boêmio e sedutor inveterado. As muitas facetas de Vinicius de Moraes vão colorir a última edição do ano do projeto Luz do Verbo, que ocorre dia 18 de novembro, quinta-feira, às 20h30min, na Do Arco da Velha Livraria e Café. Com apresentação do poeta Marco de Menezes e do jornalista Nivaldo Pereira, o encontro literário terá as participações dos músicos Camila Cornutti e Dan Ferretti, interpretando canções clássicas de Vinicius. A entrada é franca.

O Poetinha, como era carinhosamente conhecido, nasceu no Rio de Janeiro, em 1913. Aos 20 anos, já lançava seu primeiro livro de poemas, iniciando uma produção fecunda, que duraria até sua morte, em 1980. O lirismo de Vinicius conquistou imensa popularidade, em obras comunicativas presentes até hoje na memória brasileira. No teatro, trouxe a mitologia grega para o morro carioca em Orfeu da Conceição (1956), para logo firmar, com Tom Jobim, uma das mais ricas parcerias da música popular brasileira e, juntos, ajudarem a criar a Bossa Nova.

No requinte poético que trouxe para a MPB, Vinicius foi parceiro de outros grandes nomes como Baden Powell, Ary Barroso, Pixinguinha, Adoniran Barbosa, Chico Buarque e Carlos Lyra, até a expressão máxima do sucesso no dueto com Toquinho. É fato inconteste: entre as canções mais belas da nossa história musical, várias têm letras de Vinicius de Moraes. Depois dele, a MPB foi alçada à condição de grande arte.

Em tempo: no próximo Carnaval, a escola de samba carioca Império Serrano vai homenagear o Poetinha, cuja luz não cessa de nos convidar a viver um grande amor que seja infinito enquanto dure.

Projeto Luz do Verbo – sétima edição
Tema: A bênção, Vinicius
Dia: 18 de novembro, quinta-feira, 20h30min
Do Arco da Velha Livraria e Café (Rua Os 18 do Forte, 1.690, Caxias do Sul, fone 3028.1744)
Entrada franca

Mundo chato


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 12/11/2010

O mundo já foi chato. Na antiguidade, muita gente acreditava que a terra era um disco boiando num imenso oceano ou no éter divino. Um mundo pequeno, demarcado por um fatal precipício para além das fronteiras conhecidas. Mesmo muito depois, entre os intrépidos navegadores que descobriram américas e brasis, talvez houvesse alguns, mais supersticiosos, que temessem acordar na queda sem fim do vazio do mundo. Idéias estreitas, mundo chato. E não é que o mundo segue chato?

A chatice só mudou de sentido. A despeito de todas as maravilhas do conhecimento contemporâneo, de a ciência desanuviar cada vez mais as brumas da ignorância e das crenças de fundo religioso, os mortais cismaram de ressignificar a noção do mundo chato. Ainda que saibamos – nós todos, mortais – de galáxias e de universos em expansão, ainda que convivamos com as comunicações ligando tudo e quebrando limites, estamos reforçando as defesas de nossos territórios. Não há salvação fora de nossos castelos e aldeias. Nosso ego, nossas crenças, nossas paredes: é isso aí.

E a cada estação de movimento, viramos ameaça. Algum líquido na bagagem de mão? Algum objeto pontiagudo ou cortante? Passe no raio-x, no detetor de metais, tire os anéis, tire os sapatos. Você pode ser o fim do mundo, você pode conter dentro de si a bomba. Melhor não sair, não viajar. Fique seguro em seu gueto, em seu mundo. Chatérrimo mundo.

Fronteiras se reafirmam, fronteiras se confundem. Certo e errado? Direita e esquerda? Honesto e corrupto? Não sei, não sei, depende. Não creio, não torço, não faço. Melhor votar no palhaço e pagar o preço da inconseqüente piada. Bandeiras em frangalhos, ideologias vazias, esperanças mortas. Caramba, eu sou um homem de fé, não posso aceitar tanto cinismo, tanto egoísmo. Quando sai o primeiro foguete para Júpiter?

Calma, cara, convém sossegar, tomar um calmante, uma pílula para dormir. É sinal dos tempos, chatos tempos, mas passa, porque tudo passa. Enquanto isso, ponha mais uma tranca na porta, feche as janelas e compre uma lente de aumento para melhor admirar o próprio umbigo. Siga o mundo. Chato mundo.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Top five emocional

Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 05/11/2010

Qual o filme que eu mais gosto? Ah, mas são tantos, tantos, cada um ilustrando uma vereda de meu ser múltiplo. Os filmes grudam em mim por motivos tão distintos, que apontar alguns pressupõe definir uma rota íntima. Então, faço aqui um top five emocional: os cinco mais, no quesito nocaute. Filmes que me deixam estraçalhado, caído no chão, mas absolutamente siderado do demasiado humano.


Um. Era uma Vez na América, a obra-prima derradeira de Sergio Leone. Vi pela primeira vez no cinema, lá por 1985. Um baita épico sobre gângsteres, infância pobre, amizade, amor, poder, vingança, culpa, redenção. Por detrás da grandeza narrativa e da violência, há nuances de extrema delicadeza, sob a trilha perfeita de Ennio Morricone. Eu amo amar esse filme.


Dois. Ondas do Destino, de Lars Von Trier. Deus, amor e desejo se confundem na frágil cabeça de uma mulher (Emily Watson, divina) numa vila escocesa de petroleiros. O sórdido e o sublime se alternam na voltagem dramática peculiar de Von Trier. Os temas cristãos da expiação e do sacrifício encontram uma leitura criativa e chocante. Sempre termino aos prantos.


Três. Paisagem na Neblina, de Theo Angelopoulus. Na Grécia, um menino e sua irmã pré-adolescente fogem em busca do pai que nunca conheceram. Qual moderna odisséia, encontram dor e ilusão por estradas nevoentas. As cenas com um grupo de atores mambembes são de uma poesia lancinante. E o final? Nunca sai da gente.


Quatro. A Estrada da Vida, de Federico Fellini. A relação da singela Gelsomina (Giulietta Masina) com o brutamontes Zampanò (Anthony Quinn) em apresentações circenses pelo interior rende momentos iluminados da história do cinema. Personagens arquetípicos, emoções viscerais e mais a trilha de gênio de Nino Rotta: eis o meu Fellini preferido.


Cinco. A Liberdade é Azul, de Krzysztof Kieslowski. Se a vida tira pedaços, se a realidade aniquila, também é do humano renascer, nem que seja preciso fazer soar cada nota da dor de que se tenta fugir. Poucas vezes o cinema foi tão certeiro em desfiar as dobras de nosso coração. Um filme-sinfonia sobre a vida, para sempre.