Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Contos astrais: Aquário


Nivaldo Pereira
Publicado no jornal Pioneiro, 2005

Caros internautas: a comunidade Eu Fui Amigo do Ganimedes pretende homenagear essa grande figura humana que marcou profundamente nossas vidas. Neste ano se completa uma década do acidente de ultraleve que levou embora nosso amigo, com apenas 42 anos. Sintam-se à vontade para deixar aqui seus depoimentos, com toda sinceridade e sem frescura, do jeito que ele gostava. Onde ele estiver, com certeza estará sorrindo pra gente, voando com duas asas enormes...

Fred: Dez anos, já? O tempo voa. Eu o conheci no primário, e ele entrou na turma no meio do ano, depois de ter sido expulso do colégio dos padres. Era tempo da ditadura militar, e não foram poucas vezes em que o Gani era chamado na diretoria ou levava suspensão. Tudo porque não aceitava ordens sem discutir. Voltamos a nos encontrar anos depois, nos corredores da faculdade de sociologia. Lógico que ele não terminou o curso, porque sempre esteve mais interessado em organizar passeatas contra isso e aquilo. Acho que ele teria um belo futuro na política. Saudades de você, cara. Foi um privilégio ter sido seu amigo.

Hanna: Fico pensando agora se ele tivesse concordado em ter um filho comigo. Vivemos juntos por quase três anos. Mas o Ganimedes tinha horror à idéia de ser pai. Dizia que não queria ser obrigado a cuidar de ninguém por causa de convenções derivadas da parte animal da natureza humana. Daí passava a defender uns bizarros sistemas de controle de natalidade e a ação do governo no sentido de impor contraceptivos à população miserável. No fundo eu achava que ele tinha coisas mal resolvidas com a família, principalmente o pai, de quem nunca falava. Era difícil fazer com que ele se abrisse emocionalmente. Às vezes assumia uma frieza glacial e foi por isso que nosso “casamento” acabou. Muita gente achou que foi por causa do lance com o outro cara, mas não foi. Ele tinha um lado selvagem, de tão livre, e eu sabia que nunca seria meu. Felizmente a gente descobriu que funcionava melhor sendo amigos. E assim fomos até aquele dia trágico. Mas agora sou eu que não quero tocar nessas emoções. Ele sabe que meu amor permanece igual.

Laila: Ele tinha a mania de a cada vez que me via inventar um nome novo pra mim. Já fui Astrud, Sonja, Gertrudes, Zora, Gudrum, Hermenegilda, Saionara e até Maria-do-Perpétuo-Socorro, dito assim, sem pausa. Argumentava que o nome era a máscara da pessoa e que me queria sempre dona de muitas caras, muitas amigas numa mesma mulher. Uma vez ele me ligou às três da manhã, falou somente “escuta isso” e encostou o telefone na caixa de som. Rolava uma música do Salif Keita. Fiquei esperando a canção terminar, preocupada, achando que ele estivesse maluco, drogado, sei lá. Aí ele disse algo como “Talita, a África ainda vai salvar a humanidade”, e desligou. Esse era o Ganimedes. Ontem mesmo ri sozinha, lembrando do concurso de palavrões que ele organizou uma vez numa formatura. Alguém aí estava lá? Quem lembra do palavrão vencedor? Talvez a gente deva fazer uma festa no aniversário de partida dele, pra repartir histórias. Vou aparecer com o nome de Zúbia.

Roberto: O cara foi embora cedo pra não ver a caretice que tomou conta do mundo. Ele não ia suportar ver os antigos colegas de militância metidos em falcatruas. Meu brother, essa gentalha não te merecia. Você era de outro planeta!

Elisa Luz: Hanna, querida, que bom te encontrar por aqui. Vou te adicionar aos meus contatos. O Gani continua unindo a gente, como sempre fez, não é mesmo? E olha só que coincidência! Você falou do lance com o outro cara, e adivinha quem encontrei ontem? Ele mesmo. Estava num shopping, com mulher e filhos. E pensar que por ele o Gani quase foi linchado naquele bar, depois de se darem um beijo na boca. Eu jurava que nada mais me surpreenderia no Gani, mas confesso que fiquei chocada quando ele desafiou os machões do bar com aquele discurso de que o amor não tem sexo nem cor nem credo, enquanto o outro saía correndo, sem assumir o próprio afeto. Confesso também, amiga, que fiquei mais impressionada com sua atitude de permanecer vivendo com um homem que de repente admitia estar caído de paixão por outro cara. Sabemos que o Gani estava mesmo acima de rótulos. O lance dele era amar, e amar urgentemente, como se soubesse, naquela típica ansiedade, que viveria pouco. Hannusca, tenho o maior orgulho de ter convivido com vocês e espero que a gente retome nossa amizade.

Bocão: Ganimedes, seu bruxo! Não é que o império norte-americano está ruindo exatamente pelos motivos que você apontava há mais de 20 anos, e a gente te chamava de maluco? É regra: ninguém é profeta em seu tempo e em sua terra...

Gigi: Na época de estudante ele não tinha endereço certo, vivia pousando na casa dos amigos. Certa vez minha avó perguntou de que família ele era. E a resposta certeira: “Sou da família Mundo”. De outra vez, os guris foram questionar ele por que, entre tantas gatas na faculdade, ele namorava uma feia, preta e gorda. O Gani falou: “Engraçado, eu ainda não tinha reparado que ela é feita, preta e gorda...” Gente, o Gani era o cara!

Audrey Turner: Friends and friends! Não posso me omitir em falar do Espelho. A gente se tratava assim porque fazia aniversário no mesmo dia e tinha mapas astrais muito parecidos. Foi ele quem me apresentou ao yoga, ao budismo e a Jung, que hoje fazem toda a diferença em minha vida. A gente se conheceu quando estudantes, em Roraima, no antigo Projeto Rondon, no meio de índios e caboclos. O Gani improvisou um teatro de bonecos com gravetos para explicar ao povo a necessidade de proteger as águas e o ambiente. Eu gamei nele no ato. Recentemente, um amigo me trouxe da Europa um disco do Screamin’ Jay Hawkins, que o Gani amava, e eu chorei de saudades ouvindo. Espelho meu, já não existe nesse mundo alguém tão estranho quanto eu, mas você está vivinho em meu coração. Te amo pra sempre. Namastê!

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