Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







domingo, 22 de maio de 2011

Contos astrais: Os gêmeos


Nivaldo Pereira

Texto publicado no Pioneiro, 2005

Diante do espelho, ele nota uma pequena espinha despontando no canto do nariz. Deve ter sido resultado do gorduroso fish and fries de anteontem. Peixe e batata, tudo frito, no fast-food. Como os ingleses comem mal! Ódio mortal da espinha. Espreme, aperta, cutuca a pele com as unhas. Uma gotinha de sangue aparece. Pronto! Era isso que você queria? Custava esperar? Era a voz do irmão, dentro de sua cabeça. No espelho o vê: seu outro, seu gêmeo. Ficara no Brasil, de braço quebrado. E ele ali, sozinho em Londres, com um mês para explorar as referências tantas dessa cidade que conhecera nos livros, nos filmes, nas bandas dos anos 60, 70, 80. West End, Piccadilly Circus, Oxford Street, Hyde Park. Sai do quarto minúsculo, deixa a chave na portaria e ganha o mundo, dispensando o breakfast econômico.

Poucas coisas nessa vida lhe dão tanta satisfação quanto flanar pelas ruas, mais ainda se forem ruas inéditas de seus passos, mais ainda se forem ruas míticas, por onde teriam caminhado Miss Dalloway, Oliver Twist, Agatha Christie, Oscar Wilde, Morrissey, Mick Jagger e Paul McCartney. Hoje decidira não traçar roteiros. Entraria no metrô e desceria somente onde percebesse na estação algum sinal, algum convite para o inesperado. Era um jogo, gostava disso. Andar e pensar, criar enredos, imaginar, falsear o real até ele virar colorida ficção. Pisa nas escadas rolantes de Gloucester Road, posicionado-se do lado direito. Ingleses têm pressa: a esquerda deve ficar livre para os afobados.

O trem chega logo. Cheio àquela hora da manhã, começo de expediente. Um jovem executivo, de paletó e gravata, sentado, abre a valise e dela retira uma banana. Descasca-a e soca-a inteira na boca. Que cena bizarra! O homem põe as cascas num saco plástico e guarda na pasta. Esse cara deve ser muito metódico, a ponto de levar um saco de lixo consigo. Seria um misógino excêntrico? Teria uma identidade oculta? Boca fechada mastigando, bochechas cheias de banana, o outro se percebe vigiado. Ele muda bruscamente o foco do olhar. Ingleses prezam a indiferença. Estação Notting Hill Gate chegando. Lembra do filme com Hugh Grant e Julia Roberts. Cantarola baixinho a canção do Charles Aznavour: She may be the beauty or the beast... Impulso de descer. Será que hoje é dia daquela feira? Mas permanece no metrô.

Debaixo de seu olhar, no banco, uma mulher de meia idade e cabelo azul lê um livro. Curiosidade aguçada, tenta espiar a capa. Olha só: é Budapest, tradução do romance do Chico Buarque. Ele tem ganas de se revelar brasileiro, dizer-se fã ardoroso do Chico. Mas segura a onda. Nada de intimidades ali: a dama inglesa não haveria de gostar. Estação Paddington se aproxima. Lady Agatha falava dessa estação em seus livros. Trens pontuais, crimes exatos. Desceria aqui? Espia o povo na plataforma de embarque. E súbito, num vislumbre, vê a si mesmo lá fora. O irmão gêmeo! O mesmo braço esquerdo quebrado, a roupa conhecida. É ele sim! Coração pulando, sorry, sorry, excuse me, empurra as pessoas até ficar na porta do vagão, esperando o parar do trem. Sai em carreira desabalada.

Como seria possível? O outro desistira da viagem por causa do acidente de bicicleta, braço engessado, três meses de espera. Falara com ele por telefone há dois dias, estava lá, em casa. Curte por mim, vai na Baker Street ver o Sherlock Holmes, dissera até. Uma surpresa? Então era isso? Corre até o lugar onde vira o irmão na plataforma oposta. Não havia como passar para o outro lado! Pensa até em descer pelo fosso dos trilhos. Não! Tempos estranhos: atitudes suspeitas são perigosas, clima de terror no subway londrino. Então sobe as escadas até chegar na avenida lá em cima. Entra numa cabine telefônica vermelha. Liga a cobrar para casa. Ninguém atende. Na casa da irmã: nada. Cadê todo mundo? Como saber se o louco do Hermes entrou de repente num avião e veio para Londres de braço quebrado e tudo?

Tec-tec-tec-tec. Que tormento digitar com uma mão só! Uma lauda de texto e já está cansado. Mas continuaria sua história. No porta-retrato ao lado do computador, em cuja foto ele e o irmão aparecem rindo, idênticos, está afixado o postal que recebera de Londres. Estação Paddington. No espelho da porta do armário vê a espinha crescendo embaixo do nariz. O irmão adora espremer cravos e espinhas e, se estivesse ali, não deixaria por menos. Volta os olhos para o texto. Escrever era o único jeito de viajar sem sair do lugar: brincando na linguagem, na imaginação e nas possibilidades de ser um outro. Afinal, era chamado de Hermes, nome de um deus moleque e mentiroso, com asas nos pés. Mas e agora, ó Hermes, divino trapaceiro? Como resolver a situação que inventara, aparecendo de improviso na viagem do irmão?

Ah!, com gêmeos é assim mesmo: quando se pensa que é um, pode ser o outro. Ele examina o mapa do metrô de Londres. Próxima estação: Baker Street. Tec-tec-tec-tec. Literatura não precisa de lógica. Não é, meu caro Watson?

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