Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







segunda-feira, 2 de maio de 2011

Contos astrais: Touros


Nivaldo Pereira
Publicado no Pioneiro, 2005

Mal desceu do táxi, no centro da cidade, ele sentiu a força do perfume natural que emanava das laranjeiras e limoeiros dispostos nas calçadas como árvores ornamentais. Talvez por causa do calor da primavera, o aroma cítrico vibrava quase visível no ar, irradiando uma sensação de limpeza com pitadas de entusiasmo. Sabia que ia gostar de Sevilha. Foi só por hábito que agiu como nas outras paradas, deixando a bagagem no guarda-volumes da estação ferroviária e vindo explorar a cidade apenas com a mochila. Agora era só achar um hostal econômico e ir buscar a mala. Não demorou para ser interpelado por guias turísticos e donos de charretes: propostas de um passeio típico pelas ruas sinuosas e apertadas de antigamente. Não, não, gracias. Queria pisar na terra andaluza, sentir mais aquele cheiro magnético, olhar os arabescos e azulejos das casas e prédios e escutar a cantilena de vozes e ruídos dessa terra de gitanos e flamencos. Queria estar cansado quando a noite chegasse e ele viesse a desabar na cadeira de um bar para embriagar-se de vinhos e sensações.

A outonal manhã chuvosa de maio ia ao meio quando Ariadne terminou o desenho. Retocou com a borracha um detalhe da jóia maior, ao centro da gargantilha. Gostou do trabalho. Começou a pintar cada parte. Seria verde esse elo central, o maior de todos, a única pedra em meio a recortes polidos de chifre bovino. Enquanto mexia o pincel na aquarela, olhou o relógio. Tinha combinado de almoçar com uma amiga. Ariadne desconfiava de que estivessem aprontando alguma festa surpresa, para o dia seguinte, quando faria aniversário. Mas ela decidira desaparecer, esconder-se nesse dia, sem dar o paradeiro a ninguém. Não estava a fim dessa benéfica mas incômoda solidariedade dos amigos para com alguém em situação de dor. Que a deixassem lamber as próprias feridas. Um dia isso passaria. Aliás, já estava passando. E voltou a prestar atenção no projeto de gargantilha que iria ainda hoje para a confecção, a tempo do desfile no final do mês.

No segundo dia em Sevilha, ele só confirmava uma familiaridade misteriosa e excitante, que o fazia por momentos esquecer de sua condição de estrangeiro. Agora ia explorar a margem do grande rio Guadalquivir, de águas barrentas e mínimas praias arenosas faiscando sob o sol de Andaluzia. Não olharia o mapa. Ficaria na cidade tempo o suficiente para descobri-la andando, perdendo-se de bom grado pelas callejas. Nem que todo o dinheiro que ainda restava da venda do terreno fosse gasto ali. O terreno no Brasil. Grãos de areia do Guadalquivir. Tudo se desintegra. Tudo acaba. Era melhor esquecer disso... Avistou a arena monumental da Plaza de Toros de la Maestranza e para lá se dirigiu. A temporada de touradas tinha começado havia um mês. Ficou seduzido pela pintura em azulejos de um touro negro arremetendo contra um matador de capa rosada em punho. Legítima fúria animal. Não a placidez apática de bois gordos, esperando o abate, mas a reação instintiva de macho. Ele lembrou de quando vira, na fazenda do tio, peões na castração de novilhos. O animal laçado nas patas, derrubado, pescoço torcido, testículos amarrados. E a faca afiada. E o corte sangrento. Caía um touro, levanta-se um boi manso. Sentiu um nó na garganta. Não nascera para boi. E ali estava, livre, no mundo, sem apegos.

O caseiro da chácara se espantou quando viu chegar o carro da irmã da dona da casa. Ninguém aparecia ali durante a semana. Ariadne disse que ia ficar até o dia seguinte, precisava de sossego para estudar. Logo trocou de roupa e tomou a trilha que ia até o rio. Silêncio gotejante na mata úmida. Dia de aniversário, tempo nublado. Ele estava bem longe, ninguém sabia onde. O noivado, desfeito com rancor, sem diálogo. O terreno dos sonhos, vendido. Casa, casamento: nada mais. Tudo por um desejo insano, dela. Aventura de nada, coisa ridícula, carnal, mas traição, sim. A verdade não livra ninguém da culpa e nem da dor. Podia ter ficado calada sobre o fato, mas o amava e quis falar tudo. Ainda o ama, admitiu. E chorou junto com a chuva que despencou ruidosa sobre a mata.

Noite alta. A cantora morena no palco tinha uma voz forte e aveludada. Era gorducha, de cara redonda e simpatia maternal. Numa mesa, sozinho, ele tomava a terceira jarra de vinho tinto, mordendo petiscos de calamares empanados, quando escutou uma canção conhecida. Música brasileira, com o sotaque espanhol da mulher. “Só louco, amar como yo amei, só louco...” Canção de Dorival Caymmi! “Oh, insensato corazón, por que me hiciste sufrir?”. Fosse pelo vinho ou pela solidão de viajante, ele sentiu ganas de explodir, sair correndo. Quis abraçar a cantora, quis chorar. Quis até ligar para o Brasil. Perdoar tudo. Aniversário dela, lembrava sim. Mas ficou ali, emoção contida, o petisco borrachoso rolando na boca, sem engolir. Travo na goela. Dores precisam de tempo.

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