Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
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sábado, 30 de abril de 2011

O palhaço de bicicleta


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 29/04/2011

O palhaço pedalava sua bicicleta, no acostamento da avenida. Era a hora do trânsito nervoso da tardinha, e ele seguia o fluxo de carros e ônibus, à margem. Não havia outras bicicletas, só a dele, a desafiar o domínio assegurado das rodas maiores e motorizadas, no asfalto do coração da cidade. Essa imagem foi um choque para mim, a ponto de quebrar a armadura de cuidados com que eu caminhava na calçada cheia de gente. Segui andando, mas olhando sempre para trás, até ver sumir na distância o palhaço de bicicleta. Segui sem saber em que ponto a inesperada cena tinha me tocado.

Não havia no homem a graça ridícula de todo palhaço, embora estivesse vestido a rigor. Naquela hora, ele era um mero transeunte, apesar da cara pintada e do traje colorido, pedalando uma bicicleta. Talvez tenha sido esse, o motivo de meu susto: o palhaço andava a sério, zeloso do trânsito. Era um trabalhador voltando para casa, quem sabe. Nada de cambalhotas, nem mãos fora do guidão, nem chistes ao respeitável público. Ali havia apenas um cidadão comum, sobre um veículo que até podia ser instrumento de trabalho, mas que naquela hora era seu meio de transporte. Sinceramente, eu nunca esperei tanta elegância de um palhaço.

Sim, elegância. Por associação, puxo da memória a imagem de uma mulher que eu vira certa vez em Amsterdã, ela de bicicleta, uma mão no guidão e a outra segurando uma sombrinha violeta sob a chuva fina. Linda! E de tempos antes, outra mulher, em Barcelona, executiva de tailleur e salto alto, mas dirigindo impávida sua motinha vespa. Será que eu estou a ligar elegância, beleza de ser, ao equilíbrio explicito de andar sobre duas rodas?

Ao ver o palhaço sério, de bicicleta, logo pensei: preciso escrever sobre isso, mesmo sem ver um sentido claro na cena. Agora, no exercício da crônica – o viver em voz alta, como definiu Rubem Braga –, a imagem vai encontrando um eixo. Sério ou não, palhaço é transgressão. Aquele da bicicleta transgredia em humanização a violência ruidosa da hora do rush. Um fiapo de esperança equilibrista.

Passou, mas ficou em mim. E agora fica aqui.

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