Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Contos astrais: Sagitário


Nivaldo Pereira

Diante da portinhola da cabine de madeira antiga, ela sentou e, com um pigarro, anunciou sua presença.
“Padre, eu queria falar com o senhor. É uma coisa que eu nunca contei a ninguém...”
“Abra seu coração, minha filha. Não há falta que Deus não possa perdoar, se há arrependimento.”
“A história é meio longa. Vou começar do começo. Um ano atrás, conheci um homem e me apaixonei na hora. Foi na fazenda de uma amiga minha. O pai dela cria cavalos de raça, tem um haras e tudo. Esse homem apareceu suado, montado num puro-sangue marrom. Lindos, ele e o cavalo. Abriu um sorriso enorme pra mim, assim, de simpatia natural, e acenou. No ato me lembrei do Capitão Rodrigo Cambará, do Erico Verissimo. Era o mesmo jeito conquistador e folgazão. Eu fiquei hipnotizada. Fui seguindo ele com o olhar, ele se misturando aos outros jóqueis da fazenda. De onde eu estava dava pra escutar a gargalhada dele, esbanjando alegria. Fiquei ainda mais louca quando ele desceu do cavalo e exibiu um par de coxas maravilhosas na malha branca da calça de montaria.”
“Não precisa entrar em detalhes, minha filha...”
“Desculpe, padre. Sou muito direta e esqueço que as pessoas têm pudores. Pois bem. Depois do almoço, os outros da casa tinham ido pra sala jogar cartas, e eu, com uns uísques na cabeça, pedi a ele pra me ensinar a cavalgar. Nessa altura já tinha rolado o maior clima entre a gente. Ele foi na garupa do cavalo, me ensinando a pressão certa da rédea. Não quero constranger o senhor, mas naquela tarde eu tive a mais intensa experiência de amor, no meio do bosque da fazenda. Combinamos em tudo, até nos excessos. Ele contou que era casado, mas que ia se separar da mulher, uma advogada muito ciumenta, que usava o filho deles como desculpa para mantê-lo preso num casamento de fachada. Desde então a gente não passou mais de dois dias sem se ver. Ficou claro que a gente nasceu um para o outro. Só que eu comecei a me cansar de ser a outra, do medo dele de ser descoberto comigo. Não sou ciumenta, padre. Também adoro liberdade e viveria muito bem com ele assim, cada um na sua casa. Mas ficava furiosa com as coisas que ele contava da mulher. Tudo bem, ele também se mostrou meio frouxo em aturar passivamente os desmandos daquela bisca medonha. Eu temia dar uma prensa nele, do tipo ou ela ou eu, e passar uma imagem de dominadora. Foi aí que eu decidi tomar umas providências. E descobri a escola em que o filho deles estudava.”
“Deus pai! O que você fez, filha?”
“Não se apavore, padre. Eu mesma, diretamente, não fiz nada. Já conheço bem o meu homem. Meu centauro é muito doce, muito desligado de tudo, só pensa em campeonatos aqui e no exterior e em virar treinador de jóqueis. Sei também que ele só reage quando tem o orgulho ferido, quando se sente enganado. Pra acabar de vez aquele casamento, só se ele descobrisse que a mulher o traía. Segui ela umas vezes, da saída do fórum, da saída do escritório. E nada que desse pinta de algum caso. Então eu pensei em criar um lance comprometedor pra ela. Eu tenho um amigo, um ex-namorado, que não tem encanações com falcatruas. Ofereci uma grana boa pra ele fazer um servicinho mole-mole, em duas etapas. Descobri os dias em que a mulher pegava o menino no colégio e os dias em que era o pai que ia lá... Está ouvindo, padre?”
“Sim, pode continuar.”
“Achei que o senhor estivesse cochilando. Meu amigo passou na saída da escola e pediu ao menino que entregasse à mãe uma caixa de bombons. Ele disse ao guri que era namorado dela, mas que o pai dele não poderia saber. Na outra semana, meu amigo voltou lá, no dia em que o pai iria buscar o filho, e deu ao pestinha um presente, um binóculo, que me custou uma fortuna, com o pretexto de que precisavam se tornar amigos. Logicamente o pai iria querer saber de tudo e a bomba explodiria. Sei que ele quando encasqueta com uma coisa, fica surdo e cego, cabeça dura total. E deu tudo certo, padre. Estamos vivendo juntos há dois meses, muito felizes. A separação corre no litigioso, porque ele não quer ver a ex-mulher nem pintada.”
“Mas você está arrependida do que fez...”
“De jeito nenhum. Foi o único jeito de ele terminar de vez o que já estava acabado. Só assim ele viu a megera com quem tinha se casado. Fiz um favor enorme pra ele e pra nossa felicidade.”
“Minha filha, o que você fez não foi certo.”
“E o que é certo, padre? Viver infeliz? Ele viver preso a um casamento falido? Eu ficar longe de quem amo porque outra mulher manipula meu homem?”
“Você também manipulou, mentiu. Quando ele descobrir, vai te abandonar.”
“Só se o senhor contar. Mas segredo de confissão é sagrado, não é padre?”
O padre ficou mudo, de olhos arregalados. E ela explodiu numa gargalhada:
“Desculpa, padre. Sua cara de pânico me cortou o coração. É tudo mentira. Eu sou atéia, Odeio padre, odeio igreja, e tinha essa fantasia de inventar uma história de falta de ética que deixasse um padre sem ter o que dizer no confessionário. Mas o senhor me perdoa, não? Dar a outra face é cristão, não é, padre? O senhor me perdoa de coração, padre? Ou, na real, tem vontade de me dar um coice violento e me expulsar daqui?”

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