Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
Meninos numa tarde de verão
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 24/12/2005
Na calçada disputada pelos pedestres apressados, a mãe índia, sentada, dá o seio ao filho pequeno. Do outro lado da esteira estendida, sobre a qual estão espalhadas pequenas peças artesanais coloridas e rústicas, um outro filho da índia cuida de mostrar aos passantes as novidades. É um curumim moreno e rechonchudo, de uns quatro anos de idade, com o rosto marcado pelos traços de seu povo. Ele exibe a uma mulher loura o apelo da temporada: um sino feito de vime trançado, ao modo dos cestos típicos, com uma bola vermelha natalina à guisa de badalo e um laço de camurça também vermelho na base da alça. O menino sacode a peça, como a reafirmar sua função alvissareira, mas o sino pequenino não bate. Ouve-se apenas um leve som abafado, da bolinha contra o vime, naquele sino que não dobra por quem o criou. O curumim insiste em chacoalhar o enfeite aos transeuntes da tarde quente. Som tímido, surdo. Badalo inútil, de música pobre.
Perto dali, enquanto avança a tarde do verão recém-instalado, um homem velho, num banco de praça, apresenta à roda humana que o envolve um instrumento musical. É uma cítara, da qual ele extrai as notas de uma antiga canção natalina. O ambulante de ocasião vai facilmente tocando em cima das bolinhas pretas da partitura inserida sob as cordas de aço da cítara. Um menino se aproxima do vendedor, indicando que também quer tocar um pouco. O homem o ajuda, guiando os dedinhos miúdos por cima das marcas pretas do papel. Ba-te o si-no pe-que-ni-no, si-no de Be-lém... Quando reconhece os acordes da canção, os olhos do guri se iluminam, e ele espia a mãe e os outros, sorriso aberto ao infinito. Confere os próprios dedos, como se os descobrisse tomados de alguma magia. A mãe pergunta o preço do instrumento. Muito caro! O velho faz abatimento. Ainda não dá. Fica para outra vez. E a mulher sai da roda levando o filho pela mão. No semblante infantil, apenas uma nota vazia. Um travo de desilusão, talvez o primeiro da vida.
O som da cítara mistura-se ao barulho do chafariz ligado na praça. O experiente fotógrafo posiciona-se para mais um clique. Espera a mulher jovem convencer o filho pequeno a ficar sozinho no trenó do Papai Noel construído em fibra. Mas a criança abre um berreiro. Não quer estar ali. A mãe tenta de todo jeito. Promete sentar junto. É só uma foto, uma só para mostrar ao papai, uma só, rapidinho. Nada. O menino não gosta do enorme boneco do velhinho de vermelho e nem das renas do trenó. Chora convulsivamente. A mulher se desculpa ao fotógrafo. Não vai ficar boa uma foto assim, aos prantos. Nisso, a buzina estridente do carrinho do sorveteiro se faz ouvir. A mãe aponta a guloseima e negocia com o filho. Se ele ficar quietinho para a foto, ganha um sorvete. Duas bolas na casquinha. Sorvete delicioso, olha ali na mão da menininha, e ela nem chora. Quem chora fica feio. E finalmente o fotógrafo mambembe enquadra no visor da máquina o trenó, a mãe e o menininho agora quase feliz, segurando seu sorvete de duas bolas.
O mesmo sol ainda mostra-se vigoroso em calor e luz quando o sino da igreja marca seis horas. Os acordes da Ave-Maria espalham-se pelo entorno urbano, ferindo os ouvidos de dois meninos maltrapilhos, sentados no chão. Não têm dez anos ainda. Um deles segura um saco plástico de encontro ao nariz e à boca, resfolegando repetidamente. O outro tem os olhos revirados, viajando por invisíveis territórios, certamente mais luminosos do que o desse céu cujo azul fere as retinas opacas. Logo estão a pedir trocados aos passantes, sem sequer balbuciar direito as palavras. Nessa hora, não sabem quem são, não têm nome, nem pai, nem mãe. São meras crianças da tarde de verão, sem passado, sem futuro. Um deles deita-se no chão e volta a aspirar o conteúdo do saco plástico. E fica assim: olhar parado no infinito, acompanhando atentamente a viagem de um menino feito ele, que desce do céu num carro de sol. Todo dourado, o menino que vem do céu acena. Ele cutuca o coleguinha. Veja, olha, veja lá. Mas o outro está distraído com algumas crianças vestidas de anjo, que entram na igreja para o coro da missa festiva. O sino volta a badalar. A tarde ainda é firme, mas nela se propagam pelo alto-falante da igreja lindas vozes infantis cantando a chegada de uma certa noite feliz.
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