Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
quinta-feira, 1 de julho de 2010
Contos astrais: Caranguejos
Nivaldo Pereira
Enquanto esperava sentada sua vez de ser atendida, tentava descobrir que encomenda seria aquela, sobre a qual recebera um aviso do correio. De olho no número da senha eletrônica, divagou sem perceber no sonho que tivera. Era noite, estava numa praia, ou rio, de mão dada com um homem alto, muito alto (quem era ele?), quando se via rodeada de caranguejos, todos em posição de ataque, pinças levantadas e aquele peculiar caminhar de lado, traiçoeiro. Em pânico, ela tentava subir no corpo do homem, mas ele afundava na areia fofa, até desaparecer de vez no chão. E aquele exército de caranguejos ali! Acordara aflita. Por que tanto medo de caranguejos? Quando vira o primeiro, assim, ao vivo, já era uma adolescente, mas o pavor era bem mais antigo, talvez fruto de alguma memória perdida no profundo do seu poço íntimo.
Assustou-se com um toque em seu braço. Era um ex-aluno, sentado na fileira de trás do espaço de espera do correio. Ela sorriu, dizendo oi, bom te ver. Um garotão inteligente e sensível, que adorava história antiga. Lembrou do intervalo de uma aula, no ano anterior, em que esse rapaz de olhos sempre úmidos trouxera uma gravura egípcia, reprodução de um papiro com um escaravelho, em busca dos significados daquele símbolo. Dissera ele que sonhara com aquele bicho, por isso queria saber tudo sobre o assunto. No dia seguinte ela entregara a ele cópias de páginas de livros sobre mitologia egípcia. E desde então passara a vê-lo com uma cumplicidade afetiva, quase como a um filho. No visor, viu acender o número de sua senha. Disse tchau ao rapaz e dirigiu-se ao balcão.
Entregou ao atendente o aviso recebido e a carteira de identidade. Ele voltou logo com uma caixa pouco maior que uma de sapatos. Em letra tremida, mas caprichada, no destinatário estava escrito Celene, e não a grafia certa, Selene. No remetente, a surpresa: Margarida Sampaio, a madrinha de crisma, de quem não tinha notícias há anos. Assinou o recibo e saiu ansiosa em direção à casa, louca para abrir o pacote. Dinda Margô! Ainda estava viva. Como soubera seu endereço? Saiu do elevador já tentando arrancar com as unhas as fitas adesivas da caixa. Em poucos minutos, estava tudo desempacotado, em cima da mesa: uma toalha redonda, feita de fuxicos coloridos (Dinda Margô era uma artesã!), uma carta e um velho álbum de fotografias. Indecisa se olhava primeiro as fotos ou se lia a carta, abriu o envelope, sentindo certo frio no estômago, e sentou-se na poltrona.
A madrinha demorava-se em preâmbulos, dizendo que sempre quisera falar a verdade a ela, desde a morte da mãe, há anos, mas que somente agora se sentia na obrigação de relatar tudo, por causa da notícia que havia recebido. “Soube que seu pai morreu no começo deste mês”. Como assim? “Eu jurei para sua mãe nunca falar nada, mas agora nem ela e nem seu pai estão mais entre nós, então devo revelar.” Deus! O que é isso? “Você, que estuda história, tem o direito de saber, e não posso morrer com esse segredo. Seu pai não morreu atropelado quando você era pequena.” Que piada é essa? “Ele abandonou sua mãe e você, para viver com outra. Foi quando sua mãe veio com você morar aqui na cidade, onde não conhecia ninguém, só a mim. Ele era um caminhoneiro, vivia viajando. Sua mãe temia que você sofresse mais com o abandono e preferiu falar em morte.”
Lágrimas automáticas despencaram sobre o papel e ela parou de ler um instante. Isso não podia ser real! Devia ser alguma novela barata da televisão! As mãos tremiam segurando a carta. A madrinha falava a seguir nos retratos, que a amiga pedira para ela guardar, pensando em um dia contar toda a verdade à filha, mas morrera sem tomar essa decisão. Trêmula, abriu o álbum. Muitas fotos do casamento dos pais. O pai! Nunca tinha visto sequer um retrato dele. Era um homem bonito, de sorriso aberto. Outras imagens: o casal numa praça, o pai segurando um bebê: ela? E uma última foto, que a deixou mais perturbada: o pai na boléia do caminhão, ao lado de uma menininha, de um ano ou dois (ela! ela!), segurando a bola de acrílico da marcha, onde claramente faiscava a imagem de um pequeno siri...
Veio-lhe à mente o sonho, os caranguejos, o medo. Que dia louco! A história de sua vida tinha virado pó a partir do conteúdo de uma caixa inesperada. Guardaria ela no inconsciente a lembrança daquele siri na bola transparente? Teria irmãos, por parte desse pai que nunca conhecera? Como lidar com tantas questões, tanta emoção que ameaçava romper um dique oculto dentro de seu peito? Isso: chore, amiga, chore feito criança abandonada. Depois você pensa no que fazer com esse novo passado e com o seu futuro. Agora, apenas chore.
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