Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







sexta-feira, 2 de julho de 2010

Porta-retrato

Nivaldo Pereira
(Crônica publicada no jornal Pioneiro, 02/07/2010)

No porta-retrato, na estante da sala, meu avô abraça minha avó. É uma foto de 1983; eu mesmo fiz, lembro bem, com aquelas maquininhas baratas, por isso a imagem tem agora o tom rosa-fugidio de coisa que vai desaparecer. Reconheço no rosto dela o traçado meio caído das minhas próprias pálpebras. Nele, vejo-me no corpo magro, nuns olhos apertados de quem parece mirar lá longe. Dona Milu e seu Maninho: alcunhas bem baianas, ocultando em singeleza os nomes mais agrestes de Almerinda e Petronílio. Saudade de avós é sensação quente, cheira a seiva de alfazema e tem gosto de doce de caju.
Seu Maninho andava curvado à frente, por causa da coluna, mas era ligeirinho no passo. Sem um fio branco no pretume natural do cabelo, só ele dava corda no relógio grande na parede. Tic-tac, tic-tac, marcação de dias e noites, ecos na alta cumeeira. Sentado na calçada, tirava a tampa do chifre com rapé e dava uma cafungada. Vovô, deixa eu cheirar. Atchim, atchim, quiquiqui-cacacá: moleque de tudo ri, e ele ria junto.
Vovô sabia da Lua e das estrelas, escutava a voz do vento, rezava para as almas no quintal. Todo dia primeiro de janeiro, manhã cedo, fazia uma simpatia: ia espiar o espelho d’água de um fonte, saber se viveria mais aquele ano. Até que uma vez chegou triste: minha velha, não me vi na fonte, nesse ano vou-me embora. E foi. Outubro. Morreu assim, puf!, feito passarinho – contava minha avó.
Dona Milu era forte, suportou o oco no peito. E outro oco, e mais outro: ah, por que filhos e netos morrem? Aí a morte virou uma presença, quase amiga, fosse na sala, no oratório do quarto ou na cozinha (cuja porta abria para uma cerejeira carregada). Quando fez 90, Milu se cansou. Mas a morte, ali, não achava brecha naquele corpo bem tratado. Então, a velha foi indo embora na cabeça, num alheamento gradual, até virar uma boneca, na cama: criança que as filhas mimavam. Faz um mês que ela partiu de vez, com quase 95. Naquele dia, deram fé: seu Maninho faria exatos 100 anos. Eita velho mágico! Olha só a cara dele, de mistério e travessura, neste porta-retrato. Será que no céu tem rapé?

4 comentários:

  1. Seus avozinhos caíram feito poeira mágica das asas de um anjo.
    Voce é escarrado e esculpido nessa imagem dos dois no porta-retrato.
    Beijos Nivaldo. Madá

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  2. Pois é, Madá, a genética fala alto, né? Bjs

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  3. Oi, Nivaldo!
    Que saudade de você!
    Que bom ter descoberto teu blog - graças ao novíssimo do Marcos.
    Tenho um também, menos inspirado. :) (cenasdorio.blogspot.com)
    Estive enfrentando o frio na semana passada por aí. Acho que disso não sinto falta.
    Beijos.
    Rafa (Giordano)

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  4. Mesmo sendo este um post antigo, eu tinha que comentar! Fiquei arrepiada quando terminei de ler. Que palavras encantadoras!

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