Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Estrangeiro em toda parte


"Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma"
Fernando Pessoa

Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 29/10/2010

No Rio Grande do Sul, sempre perguntam-me de onde venho, por causa do sotaque estranho, que se revela baiano. Há pouco, no Rio de Janeiro, quando me apresentei baiano, alguém logo replicou: “e essa cara do sul, e esse sotaque do sul?” Mas o pior é na Bahia. Na minha terra. É um festival de ironias, e relembro duas delas, para reforçar essa minha percepção de ser estrangeiro em toda parte, como definiu o Pessoa.

Ano passado, em Salvador, meio do ano, fui sozinho à praia, no velho e lindo Porto da Barra, me dissolver nas águas de Iemanjá. Aluguei cadeira e sombreiro, pois fugir do sol, ainda que tímido, também é uma sina, decretada pela minha dermatologista. Um livro, uma cerveja, aquele visual, e era tudo o que eu precisava, quando passa o ambulante e me aborda com um sorridente “diga aí, gaúcho!” Eu rebati, carregando no sotaque: “eu sou baiano, cara!” Ele me olhou desconfiado, e emendou: “então tá trabalhando muito, viu, meu rei”, em alusão ao meu bronze pálido. Que desaforo! Não provar minha baianidade em minha própria terra! Mandei ao inferno o ambulante, quando ele me perguntou se eu conhecia os livros de Jorge Amado, como se eu nunca tivesse pisado na Bahia. Já se viu?

Um ano antes, no verão, eu tinha ido com uma amiga a um ensaio carnavalesco do Ylê Aiyê, cuja sede fica em frente à escola onde cursei o ginásio, no bairro do Curuzu. Eu não pisava ali fazia uns 25 anos, ou mais. Fui tomado pelas recordações, anos 70, quando aquelas ruas, hoje tão estreitas, pareciam largas aos meus olhos de menino. Emocionado com as memórias, só percebi a piriguete quando ela perguntou: “você fala português?” Ah, não, no meio de tanto turista gringo rosado, justo eu pareci a ela o seguramente estrangeiro? Minha amiga rolava de rir. Na real, ninguém ali acreditaria que eu tivesse estudado por anos na escola em frente. Ironia da vida.

É, meu caro Pessoa, alguma razão deve haver para se ser estrangeiro em toda parte. O mundo todo é casa para essas almas sem casa e que já não cabem no velho berço. Tampouco cabem em berço algum. Como mutantes. Estranhos estrangeiros.

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