Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
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sábado, 2 de outubro de 2010

No divã da MPB


Nivaldo Pereira
Publicada no Pioneiro, 04/03/2006

Há pouco mais de um século, desde que Sigmund Freud revolucionou as ciências humanas com o conceito de inconsciente, as artes nunca mais foram as mesmas. Todo criador achou ali um coerente respaldo para falar dos deuses e demônios que habitam o interior do homem. Sonhos, traumas, duplos, projeções, complexos, medos, rejeições, vinganças, tudo, tudo pôde virar arte, porque tudo era humano de fato. A música popular, é claro, não ficou de fora. A partir da década de 1960, com a contracultura divulgando terapias e conceitos psicanalíticos, a MPB deitou de vez no divã e pôs-se a falar abertamente de nossos tabus.

O Divã, por sinal, é o nome de uma composição do Rei Roberto Carlos, lançada em 1972. A narrativa é uma autêntica sessão de análise, com o personagem deitado no famoso sofazinho de consultório e desfiando as lembranças remotas da infância, com a confissão: “Essas recordações me matam, por isso eu venho aqui”. O problema em questão é a permanência desse passado no presente. E surge na canção uma imagem traumática: uma festa, um grito na multidão, o sangue no linho branco, e a “paz de quem carregava em seus braços quem chorava”. O analisando não se sente inteiramente compreendido pelo analista: “Eu venho aqui me deito e falo / Pra você que só escuta, não entende a minha luta / Afinal de que me queixo, são problemas superados”. Mas, mesmo assim, parece confiar no poder da própria palavra como libertação desses ecos do passado, ao concluir: “Eu apenas desabafo confusões da minha mente.”

No ano anterior, o Rei já tinha feito sucesso com Traumas, falando do choque da percepção das mentiras contadas um dia por um pai, que aconselhava o filho a não mentir, mas que teria se esquecido de dizer a verdade. O personagem aqui sofre com as distorções que agora precisa inventar, do mesmo jeito com que o pai no passado o protegia da dura realidade com fantasias. E assume: “Talvez um dia pro meu filho eu também tenha que mentir / Pra enfeitar os caminhos que ele um dia vai seguir.” Nessa mesma canção o Rei fala de um dos efeitos psicológicos dos sonhos e pesadelos, que é revelar velhos problemas adormecidos, e ilustra a atitude comum humana: “Durante o dia a gente tenta com sorrisos disfarçar / Alguma que coisa que na alma conseguimos sufocar”. Poucas vezes o cancioneiro popular tinha descido tão fundo nas camadas subterrâneas da mente humana.

O conhecido Complexo de Édipo, antes camuflado em lacrimosas canções de elegia à rainha do lar, recebeu um tratamento visceral em 1976, quando Gilberto Gil declarou, na pungente Pai e Mãe: “A mulher que amei, que amo, que amarei / Será sempre a mulher como é minha mãe”. Na mesma época, o conterrâneo baiano Caetano Veloso foi na mesma direção, com direito a outras projeções, em Minha Mulher: “Quem vê assim pensa que você é muito minha filha / Mas na verdade você é bem mais minha mãe.” Mulher, mãe e filha na mesma figura, e sem culpa: viva Freud! Aliás, Caetano não demoraria a comprar mais uma de suas brigas com a mídia, quando foi criticado por aparecer na capa do álbum Muito (1978) com a própria mãe, Dona Canô. O irmão da Bethânia atacou o psicológico dos críticos: “Têm vergonha desse negócio de gostar de mãe”.

Do lado feminino dessa questão, a intensa Ângela Ro Ro, em seu disco de estréia, de 1979, já aparecia com uma canção chamada Minha Mãezinha, em que botava em pratos fundos e limpos a rivalidade das meninas com as mães e o corte do cordão umbilical. Começa assim: “Sua voz, tão difícil de calar, não me diz mais nada / Já não carrega mais o doce mel da abelha-rainha / Me deixa em paz minha mãezinha.” O tema é chumbo grosso e pauta constante dos divãs, entre culpas e lágrimas, porque raras moças têm a permissão cultural de encararem a mãe e atacar, como na canção: “Você, antes de mãe, é uma mulher.” Talvez só mesmo Ro Ro, com sua coragem de assumir coisas como: “Essa tristeza que o amor me deu / É a coisa mais bonita dentro do meu eu.” No geral, pinta bloqueio, e a gente fica como Roberta Miranda: “No quarto escuro do meu ego sem resposta.”

Seria hora de falar de Chico Buarque, porque esse homem sabe como ninguém falar das complexidades ocultas humanas. O que dizer, por exemplo, do amor e ódio fundidos em Atrás da Porta? Mas isso fica para uma outra sessão, meu paciente leitor, porque seu tempo acabou e o espaço aqui também. Se a tristeza bater nesse dias, e o divã estiver ocupado, pegue seu disco favorito e deixe as emoções fluírem em catárticas notas musicais. E até a próxima sessão.

Um comentário:

  1. Belíssimo texto. Há canções sobre tudo, que despertam e revelam diferentes sentimentos. Eis a razão provával da música ser a arte mais popular: fala sobre tudo, especialmente de assuntos complexos, de maneira leve, expressando em palavras o sentimento que parecia impossível de descrever através delas. Tão popular e facilmente explicada, a música sempre surpreende, sempre encontramos uma surpresa quando a estudamos, há sempre um ritmo, um tema, um sentimento novo. É por isso tudo e muito mais que acho-a indispensável.

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