Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
A dupla face de Janus
Portal de tempo: de um dia para o outro, rápido assim, muda o ano. Somos tomados pela energia do futuro. É a transição entre o velho e o novo. Trata-se de uma convenção cultural, é claro, e não vale para todos os povos na mesma data. Mas a experiência de limiar, esta sim, é universal. Por isso os antigos romanos criaram uma divindade para presidir tais passagens. Era Janus, o deus das portas e janelas, com sua dupla face: uma que olhava para frente e outra que fitava o passado. E nosso herdado calendário começa louvando Janus, com o mês de janeiro, porta de um novo ciclo coletivo.
Somos todos movidos a quereres, assim é a vida. A arte de cada pessoa é saber conciliar desejo e capacidade de realização. Porque nem tudo é nossa vontade. E quase sempre, na mala do futuro, deve haver um espaço generoso para o passado. Assim segue o baile. E dançá-lo com aceitação e alegria faz toda diferença.
domingo, 26 de dezembro de 2010
Capricorn Festival
Dizem que o rock, filho do blues, é regido por Saturno, que gosta de pedras e também rege o signo de Capricórnio e a cor preta. Por isso, invento aqui o Capricorn Festival, reunindo três capricornianos da pesada, autoridades em suas áreas, como é comum neste signo: Elvis Presley, Janis Joplin e Luiz Melodia. Ah, eu amo os três, é claro.
Elvis, nascido a 8 de janeiro de 1935, é o eterno Rei do Rock. Foi pedra fundamental na disseminação do ritmo que inventou a juventude e mudou a história do mundo. Foi o branco que, na hora certa, catalizou o movimento do ritmo da alma negra e o espalhou. E as pedras rolaram, e seguem rolando.
Janis Joplin nasceu a 19 de janeiro de 1943. Outra branca de feeling negro, de alma blues. A voz rascante e visceral, em pouco mais de 3 anos de uma carreira abreviada por sua morte em 1970, virou marco imbatível de intensidade. A emoção em Capricórnio é assim, cortante, pedra afiada, feito o canto negro de Janis.
Do alto do morro carioca, o negro gato Luiz Melodia, nascido a 7 de janeiro de 1951, misturou o balanço do samba brasileiro com as tintas do blues e do rock americanos. É uma jóia do nosso bom som, uma pérola negra da MPB. Na poesia dura e contida dos capricornianos (vide a obra em pedra do capricorniano João Cabral de Melo Neto), Melodia é rocha lapidada, exata.
Elvis, nascido a 8 de janeiro de 1935, é o eterno Rei do Rock. Foi pedra fundamental na disseminação do ritmo que inventou a juventude e mudou a história do mundo. Foi o branco que, na hora certa, catalizou o movimento do ritmo da alma negra e o espalhou. E as pedras rolaram, e seguem rolando.
Janis Joplin nasceu a 19 de janeiro de 1943. Outra branca de feeling negro, de alma blues. A voz rascante e visceral, em pouco mais de 3 anos de uma carreira abreviada por sua morte em 1970, virou marco imbatível de intensidade. A emoção em Capricórnio é assim, cortante, pedra afiada, feito o canto negro de Janis.
Do alto do morro carioca, o negro gato Luiz Melodia, nascido a 7 de janeiro de 1951, misturou o balanço do samba brasileiro com as tintas do blues e do rock americanos. É uma jóia do nosso bom som, uma pérola negra da MPB. Na poesia dura e contida dos capricornianos (vide a obra em pedra do capricorniano João Cabral de Melo Neto), Melodia é rocha lapidada, exata.
sábado, 25 de dezembro de 2010
Presépio
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 26/12/2010
Seu José é um burro legítimo, na capacidade de carregar a vida no lombo. Trabalhador honesto e incansável, sustenta com firmeza e responsabilidade a condição de provedor do lar. Seu José é doce, nunca reclama, de tudo extrai contentamento, jamais afrouxa o passo. Quem o vê assim, delicadamente se fazendo de burrinho com o neto nas costas, não imagina a força e a garra desse homem.
Dona Maria é feito uma vaca, no que esse animal carrega de sagrado, o sagrado de quem sacraliza cada ação cotidiana. Dona Maria tem mil utilidades. Com devoção, limpa, lava, passa, cozinha, labuta, zela, ensina, sem sossego até no sonhar uma vida melhor para os seus. No peito dela mamaram muitos filhos, no coração dela habitam esses e outros mais, milhares. Quem a vê assim, dando a mamadeira ao neto, não pode conceber a tenacidade de sua fibra.
João, Pedro e Sara são como ovelhas. Humildes e anônimos, formam uma roda gigantesca na engrenagem dos dias, com seus labores e suores. Nessa roda, os esforços conjuntos movem cidades e países, no afã de uma merecida recompensa. Na outra roda, a dos quereres, João quer, mas não tem; Pedro tinha, e perdeu; Sara espera chegar. Não estão sós. E o que querem não é só para si. Quem os percebe como desanimados, pelo desgaste da faina diária, não pode saber do vigor dos seus secretos desejos.
Pois hoje Seu José teve uma visão. Dona Maria, um anseio na alma. Sara, Pedro e João consultaram uns magos. Vieram sinais de estrelas e meninos. Seu José pensa em abrir uma marcenaria para passar sua arte aos meninos de rua. Dona Maria sente ganas de cuidar de outros filhos, quem sabe ensinar às pobres mulheres o que aprendeu sobre o uso da comida. João vê na mágica estrela sua viagem dos sonhos; Pedro, a luz de uma nova casa, e Sara, a semente radiosa de outro ser, em seu ventre.
É gente simples, na rotina de abençoados animais domésticos. Mas que, quando tocada pela estrela peregrina que percorre os corações humanos, renasce em esperança, fé e boa vontade. E todo dia é santo, toda noite é feliz. Enquanto milagres pipocam aqui e acolá, de Belém Novo a Belém do Pará.
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
Meninos numa tarde de verão
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 24/12/2005
Na calçada disputada pelos pedestres apressados, a mãe índia, sentada, dá o seio ao filho pequeno. Do outro lado da esteira estendida, sobre a qual estão espalhadas pequenas peças artesanais coloridas e rústicas, um outro filho da índia cuida de mostrar aos passantes as novidades. É um curumim moreno e rechonchudo, de uns quatro anos de idade, com o rosto marcado pelos traços de seu povo. Ele exibe a uma mulher loura o apelo da temporada: um sino feito de vime trançado, ao modo dos cestos típicos, com uma bola vermelha natalina à guisa de badalo e um laço de camurça também vermelho na base da alça. O menino sacode a peça, como a reafirmar sua função alvissareira, mas o sino pequenino não bate. Ouve-se apenas um leve som abafado, da bolinha contra o vime, naquele sino que não dobra por quem o criou. O curumim insiste em chacoalhar o enfeite aos transeuntes da tarde quente. Som tímido, surdo. Badalo inútil, de música pobre.
Perto dali, enquanto avança a tarde do verão recém-instalado, um homem velho, num banco de praça, apresenta à roda humana que o envolve um instrumento musical. É uma cítara, da qual ele extrai as notas de uma antiga canção natalina. O ambulante de ocasião vai facilmente tocando em cima das bolinhas pretas da partitura inserida sob as cordas de aço da cítara. Um menino se aproxima do vendedor, indicando que também quer tocar um pouco. O homem o ajuda, guiando os dedinhos miúdos por cima das marcas pretas do papel. Ba-te o si-no pe-que-ni-no, si-no de Be-lém... Quando reconhece os acordes da canção, os olhos do guri se iluminam, e ele espia a mãe e os outros, sorriso aberto ao infinito. Confere os próprios dedos, como se os descobrisse tomados de alguma magia. A mãe pergunta o preço do instrumento. Muito caro! O velho faz abatimento. Ainda não dá. Fica para outra vez. E a mulher sai da roda levando o filho pela mão. No semblante infantil, apenas uma nota vazia. Um travo de desilusão, talvez o primeiro da vida.
O som da cítara mistura-se ao barulho do chafariz ligado na praça. O experiente fotógrafo posiciona-se para mais um clique. Espera a mulher jovem convencer o filho pequeno a ficar sozinho no trenó do Papai Noel construído em fibra. Mas a criança abre um berreiro. Não quer estar ali. A mãe tenta de todo jeito. Promete sentar junto. É só uma foto, uma só para mostrar ao papai, uma só, rapidinho. Nada. O menino não gosta do enorme boneco do velhinho de vermelho e nem das renas do trenó. Chora convulsivamente. A mulher se desculpa ao fotógrafo. Não vai ficar boa uma foto assim, aos prantos. Nisso, a buzina estridente do carrinho do sorveteiro se faz ouvir. A mãe aponta a guloseima e negocia com o filho. Se ele ficar quietinho para a foto, ganha um sorvete. Duas bolas na casquinha. Sorvete delicioso, olha ali na mão da menininha, e ela nem chora. Quem chora fica feio. E finalmente o fotógrafo mambembe enquadra no visor da máquina o trenó, a mãe e o menininho agora quase feliz, segurando seu sorvete de duas bolas.
O mesmo sol ainda mostra-se vigoroso em calor e luz quando o sino da igreja marca seis horas. Os acordes da Ave-Maria espalham-se pelo entorno urbano, ferindo os ouvidos de dois meninos maltrapilhos, sentados no chão. Não têm dez anos ainda. Um deles segura um saco plástico de encontro ao nariz e à boca, resfolegando repetidamente. O outro tem os olhos revirados, viajando por invisíveis territórios, certamente mais luminosos do que o desse céu cujo azul fere as retinas opacas. Logo estão a pedir trocados aos passantes, sem sequer balbuciar direito as palavras. Nessa hora, não sabem quem são, não têm nome, nem pai, nem mãe. São meras crianças da tarde de verão, sem passado, sem futuro. Um deles deita-se no chão e volta a aspirar o conteúdo do saco plástico. E fica assim: olhar parado no infinito, acompanhando atentamente a viagem de um menino feito ele, que desce do céu num carro de sol. Todo dourado, o menino que vem do céu acena. Ele cutuca o coleguinha. Veja, olha, veja lá. Mas o outro está distraído com algumas crianças vestidas de anjo, que entram na igreja para o coro da missa festiva. O sino volta a badalar. A tarde ainda é firme, mas nela se propagam pelo alto-falante da igreja lindas vozes infantis cantando a chegada de uma certa noite feliz.
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
Festa de cores e frutas
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 17/12/2010
Ah, verão, estação do sol no portal de dezembro. A luz incide forte sobre o Hemisfério Sul. A temperatura sobe, as cores ganham matizes brilhantes, únicos. Tudo parece conspirar para um apogeu de manifestação, numa intensidade que envolve corpos e almas. As cores do verão gritam aos sentidos, em qualquer canto, em toda esquina. É a estação das frutas e, talvez por isso, de sugestão a todo tipo de desfrute.
Do Nordeste, vem de imediato a memória dos suculentos cajus, vermelhos alguns, ou amarelos como cajás, sirigüelas e mangas, estas se repartindo também em embalagens verdes, rosadas ou mistas. É farra de dentes nas polpas, extraindo sumos; bocas se investigando e se descobrindo em áreas de doce e azedo, na regência de línguas bailarinas e incansáveis. Verão é festa nas bocas.
No Sul, as frutas são outras, mas as cores igualmente se exibem em trajes festivos. Amarelo, o pêssego é promessa de alegria. Exposto nas fruteiras, espalha gratuitamente pelas calçadas seu odor peculiar, numa arenga que confirma a chegada do verão. Quando o dourado de sua membrana, em sutil camurça, se traduz também no ouro do mel de seu gosto, a boca que o morde experimenta o gozo da vida. Sem complicações, viver é bom porque existe pêssego.
E há os tons de rubro, a se estender do bordô ao rosado das uvas, quando não verdes. Uvas brilham feito pérolas vivas, cientes, quem sabe, de seu teor mítico. Uvas parecem saber da promessa do vinho, licor de êxtase e delírio, verões de vindimas e venturas. Sim, é sublime ventura disputar um cacho com tontas abelhas, no afã de um néctar que as atrai até aos supermercados. Toda natureza fica meio louca sob o sol a pino.
Faz calor. Eis que farta da quase roxa ameixa, a boca gulosa fica atrevida: quer então deixar roxa a pele dos pescoços, quer invadir outras bocas, repartir sumos. As línguas não se bastam: querem outras, querem todas. Os corpos vibram em cor, calor, sabor. Exibem-se, exalam-se. No desfrute do verão, cada corpo vira uma fruta colorida. Festa do sol, festa da vida, no apelo mágico sobre gente, bicho, fruta. Delícia do viver.
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
Contos astrais: Sagitário
Nivaldo Pereira
Diante da portinhola da cabine de madeira antiga, ela sentou e, com um pigarro, anunciou sua presença.
“Padre, eu queria falar com o senhor. É uma coisa que eu nunca contei a ninguém...”
“Abra seu coração, minha filha. Não há falta que Deus não possa perdoar, se há arrependimento.”
“A história é meio longa. Vou começar do começo. Um ano atrás, conheci um homem e me apaixonei na hora. Foi na fazenda de uma amiga minha. O pai dela cria cavalos de raça, tem um haras e tudo. Esse homem apareceu suado, montado num puro-sangue marrom. Lindos, ele e o cavalo. Abriu um sorriso enorme pra mim, assim, de simpatia natural, e acenou. No ato me lembrei do Capitão Rodrigo Cambará, do Erico Verissimo. Era o mesmo jeito conquistador e folgazão. Eu fiquei hipnotizada. Fui seguindo ele com o olhar, ele se misturando aos outros jóqueis da fazenda. De onde eu estava dava pra escutar a gargalhada dele, esbanjando alegria. Fiquei ainda mais louca quando ele desceu do cavalo e exibiu um par de coxas maravilhosas na malha branca da calça de montaria.”
“Não precisa entrar em detalhes, minha filha...”
“Desculpe, padre. Sou muito direta e esqueço que as pessoas têm pudores. Pois bem. Depois do almoço, os outros da casa tinham ido pra sala jogar cartas, e eu, com uns uísques na cabeça, pedi a ele pra me ensinar a cavalgar. Nessa altura já tinha rolado o maior clima entre a gente. Ele foi na garupa do cavalo, me ensinando a pressão certa da rédea. Não quero constranger o senhor, mas naquela tarde eu tive a mais intensa experiência de amor, no meio do bosque da fazenda. Combinamos em tudo, até nos excessos. Ele contou que era casado, mas que ia se separar da mulher, uma advogada muito ciumenta, que usava o filho deles como desculpa para mantê-lo preso num casamento de fachada. Desde então a gente não passou mais de dois dias sem se ver. Ficou claro que a gente nasceu um para o outro. Só que eu comecei a me cansar de ser a outra, do medo dele de ser descoberto comigo. Não sou ciumenta, padre. Também adoro liberdade e viveria muito bem com ele assim, cada um na sua casa. Mas ficava furiosa com as coisas que ele contava da mulher. Tudo bem, ele também se mostrou meio frouxo em aturar passivamente os desmandos daquela bisca medonha. Eu temia dar uma prensa nele, do tipo ou ela ou eu, e passar uma imagem de dominadora. Foi aí que eu decidi tomar umas providências. E descobri a escola em que o filho deles estudava.”
“Deus pai! O que você fez, filha?”
“Não se apavore, padre. Eu mesma, diretamente, não fiz nada. Já conheço bem o meu homem. Meu centauro é muito doce, muito desligado de tudo, só pensa em campeonatos aqui e no exterior e em virar treinador de jóqueis. Sei também que ele só reage quando tem o orgulho ferido, quando se sente enganado. Pra acabar de vez aquele casamento, só se ele descobrisse que a mulher o traía. Segui ela umas vezes, da saída do fórum, da saída do escritório. E nada que desse pinta de algum caso. Então eu pensei em criar um lance comprometedor pra ela. Eu tenho um amigo, um ex-namorado, que não tem encanações com falcatruas. Ofereci uma grana boa pra ele fazer um servicinho mole-mole, em duas etapas. Descobri os dias em que a mulher pegava o menino no colégio e os dias em que era o pai que ia lá... Está ouvindo, padre?”
“Sim, pode continuar.”
“Achei que o senhor estivesse cochilando. Meu amigo passou na saída da escola e pediu ao menino que entregasse à mãe uma caixa de bombons. Ele disse ao guri que era namorado dela, mas que o pai dele não poderia saber. Na outra semana, meu amigo voltou lá, no dia em que o pai iria buscar o filho, e deu ao pestinha um presente, um binóculo, que me custou uma fortuna, com o pretexto de que precisavam se tornar amigos. Logicamente o pai iria querer saber de tudo e a bomba explodiria. Sei que ele quando encasqueta com uma coisa, fica surdo e cego, cabeça dura total. E deu tudo certo, padre. Estamos vivendo juntos há dois meses, muito felizes. A separação corre no litigioso, porque ele não quer ver a ex-mulher nem pintada.”
“Mas você está arrependida do que fez...”
“De jeito nenhum. Foi o único jeito de ele terminar de vez o que já estava acabado. Só assim ele viu a megera com quem tinha se casado. Fiz um favor enorme pra ele e pra nossa felicidade.”
“Minha filha, o que você fez não foi certo.”
“E o que é certo, padre? Viver infeliz? Ele viver preso a um casamento falido? Eu ficar longe de quem amo porque outra mulher manipula meu homem?”
“Você também manipulou, mentiu. Quando ele descobrir, vai te abandonar.”
“Só se o senhor contar. Mas segredo de confissão é sagrado, não é padre?”
O padre ficou mudo, de olhos arregalados. E ela explodiu numa gargalhada:
“Desculpa, padre. Sua cara de pânico me cortou o coração. É tudo mentira. Eu sou atéia, Odeio padre, odeio igreja, e tinha essa fantasia de inventar uma história de falta de ética que deixasse um padre sem ter o que dizer no confessionário. Mas o senhor me perdoa, não? Dar a outra face é cristão, não é, padre? O senhor me perdoa de coração, padre? Ou, na real, tem vontade de me dar um coice violento e me expulsar daqui?”
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
Caminhos de um mito
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 10/12/2010
Baita surpresa! Um livro recém-lido mostrou-me conexão entre uma brincadeira da minha infância e o imaginário dos italianos que povoaram Caxias do Sul. Não sei se a tradição ainda é forte, mas, na festas populares do interior da Bahia, sempre tinha o pau-de-sebo. Um vigoroso mastro era untado de cima a baixo com sebo de boi ou graxa; no topo eram dependuradas cédulas, garrafas de cachaça e caixinhas com doces, e enfim o mastro escorregadio era enterrado no chão, para que a molecada se atrevesse a buscar os prêmios lá no alto.
A hora do pau-de-sebo era uma farra coletiva. Os atrevidos tiravam a camisa e tentavam subir no mastro, feito macacos. Nada. Desciam deslizando de barriga e com a pele literalmente sebenta, para algazarra geral. Até que, depois de tantas tentativas, o sebo ia sumindo e um felizardo garantia a grana, repartindo a cachaça e os doces com os demais. Não, eu nunca tentei subir: para mim, não há dinheiro que compense a nojenta sensação de corpo grudento...
Ao ler Herois e Maravilhas da Idade Média, do historiador francês Jacques Le Goff, descobri que o pau-de-sebo tem relação com o mito da Cocanha. Isso mesmo, o mito do país encantado em que corre um rio de vinho e gansos gordos são assados sozinhos nas ruas, entre iguarias sem fim caídas do céu, além de uma fonte da juventude. É o mesmo mito, presente no imaginário europeu desde o período medieval, que fez aumentar a sedução da América como lugar de fartura e felicidade junto aos italianos que chegaram ao Brasil a partir de 1875.
Le Goff situa a gênese do mito num manuscrito anônimo de 1250. Sua permanência no imaginário medieval deveu-se também à literatura. “O país de Cocanha teve a sorte de ser retomado por Bocaccio no Decamerão”, afirma o historiador. A partir do século XVIII, essa utopia virou brincadeira de criança “nas comunidades rurais e camponesas, dando nome a um elemento de festa popular, o mastro de cocanha.” Descrição semelhante à do pau-de-sebo aparece numa crônica parisiense de 1425, falando do “mastro de cocanha”.
Que beleza: mitos correm mundos no imaginário dos homens!
Um sagitariano
Como um cavalo que carregou a cultura de seu povo e a projetou com devoção e alegria para o mundo, Luiz Gonzaga (1912-1989) foi um positivo sagitariano, nascido a 13 de dezembro, dia de Santa Luzia. Depois de Gonzagão, o Nordeste já não seria sinônimo apenas de seca, miséria e abandono. Ele trouxe a alegria da festa, definindo o baião e fazendo o Brasil dançar; trouxe a fé e o entusiamo pela vida, com seu humor contagiante, e trouxe um novo olhar, gentil e generoso, para as riquezas ocultas de um Brasil iletrado, mas sábio. De manestrel caboclo, virou guru, virou Lua, virou santo. E eu sou devoto.
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
Balada de dezembro
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 03/12/2010
Parece dezembro. O mês pouco importa, mas esse triângulo verde no fundo da foto tem todo jeito de árvore de Natal. É que fotografias desbotam feito a memória da gente, baby, e os detalhes vão ficando assim, embaçados, convidando a imaginações. Ou a delírios. Mas o bom é que nosso sorriso está quase nítido. Parecemos felizes, verdadeiramente felizes. Engraçado: de súbito, uma canção me arrebata. Como no bolero de Tom e Chico, sinto ganas de te ligar e deixar confusões no gravador. Se eu tivesse teu número, é claro.
Guardo a fotografia na velha caixa, mas a canção permanece soando na cabeça. Still Loving You, do Scorpions. Cantávamos em dueto, imitando o tom nasal do Klaus Meine e rindo juntos da nossa pouca, ou nenhuma, extensão vocal. Sabíamos de cor a letra. Talvez eu ainda lembre. Time, it needs time / To win back your love again / I will be there, I will be there...
Tantas baladas curtidas num tempo em que fumaça de cigarro era puro charme. Agora que o fumo escancara a face assassina, baladas saíram de moda. Mesmo assim, ponho a rodar o disco do Scorpions, não mais aquele vinil – uma coletânea em CD. E para umedecer de rubro a sessão, uma dose de Campari com gelo. Ai, coisa mais retrô!
Parece bolero. Te quero? Te quero? Fim de ano tem dessas coisas. A gente vai ficando, a la Drummond, comovido como o diabo. Aí, na busca de algum documento num fundo de armário, uma velha caixa expõe fragmentos do que o coração pensou ter esquecido. E bate outra vez, com esperança de reviver, o remoído repertório de paixões. Outro lampejo: nosso antigo sonho de conhecer Berlim. Sonhos alemães, Nina Hagen, Fassbinder, Wim Wenders, asas de nossos desejos. Mas havia o muro, havia nossos tantos muros. Não deu.
Love at First Sting. Amor à primeira ferroada, era esse o vinil do Scorpions. Gostávamos de ferrões, densidades e sombras, jaquetas pretas, noites insones. Éramos darks, baby, remember? Era 1985. Hoje, deixo o sol de dezembro arrombar as vidraças da sala. A balada continua linda. Mas... Não me tocou. Pareceria bolero, dizer assim, que não quero teus beijos nunca mais?
Assinar:
Postagens (Atom)