Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
Contos astrais: Capricórnio
Nivaldo Pereira
Texto publicado no jornal Pioneiro
Ele já sabia que do alto do pico dava para ver, ao longe, toda a Baía da Guanabara, com seus recortes naturais a irradiar calores praianos. Respirou fundo e preparou-se para a grande escalada: quase mil e setecentos metros, até o cume do imponente Dedo de Deus. Uma ligeira névoa ainda encobria a paisagem do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Os dois guias iam à frente, parecendo alheios ao poder da grande rocha e à grandeza da empreitada que se iniciava. O mais velho devia ter uns 40 anos. O outro, um rapagão de não mais que 25. Na véspera, quando do acerto da aventura, o mais velho foi curto e seco: “Você está pagando para obedecer ao que eu mandar.” O ríspido tom de autoridade da sentença do outro despertou-lhe uma ponta de raiva: afinal, ele tinha experiência em escaladas, não era nenhum irresponsável. Como sempre, a razão se impôs: fosse ele o guia, agiria da mesma forma. Numa jornada de alto risco como aquela, não se pode dar ao guiado o direito a improvisos. É obedecer, e pronto.
Duas horas mais tarde, cumpridas as etapas iniciais, ele já se encontrava dependurado na corda de náilon, sentindo o frio do vento abismal. As mãos untadas de carbonato de magnésio, para melhor segurar, buscou o telefone celular no bolso do colete. Devia ligar para ela, avisar que tudo corria bem, saber como andavam suas dores. Mas o aparelho estava sem operação, talvez por causa da altitude. Pensou em perguntar ao guia e ao assistente se os celulares deles funcionavam. Não quis incomodar. Haveria no caminho algum degrau mais saliente, onde pudesse descansar, e ali, quem sabe, telefonaria para a mulher. Mais ansioso estava com a chegada do trecho conhecido como chaminé, uma fenda que exigiria artifícios de aranha na escalada, com pés e mãos dispostos na geometria que o guia explicara lá embaixo. Até a noitinha já deviam estar de volta ao sopé da montanha, tendo ele deixado seu registro de conquista no topo do majestoso Dedo de Deus.
A vista dali era espetacular, com Teresópolis parecendo uma cidadezinha de brinquedo. Localizou a área onde ficava a pousada e onde a mulher o aguardava, possivelmente vendo tediosos programas matinais na televisão. Nisso um deslizar de asas chamou sua atenção, entre os estampidos secos de um ou outro pino cravado na rocha. Era o planar de um urubu. Num segundo a memória o conduziu a um tempo remoto da infância, quando morrera a velha cabra leiteira do avô. O cadáver tinha sido jogado num matagal e ele ia todo dia espiar o trabalho dos urubus, indiferente ao mau cheiro e ao enxame de moscas. Menino calado, criado pelos avós. Sem emoção, olhava os restos da cabra e pensava no que seria de si quando os avós morressem também. Menino estranho, que aprendeu cedo a não contar com ninguém para viver.
Achou graça de como um urubu o tinha remetido a lembranças tão antigas.A mulher achava esquisito ele nunca falar da infância e nem dos pais. É que a vida para ele tinha realmente começado quando acabou o serviço militar e, com a pequena herança deixada pelo avô, abriu a seguradora patrimonial que até hoje lhe toma todo o tempo. Achava nobre garantir a posse do que se conquistou com muito suor. Era boa a sensação de ser importante para a sociedade E era muito bom perceber esse valor ali, acima de tudo, nas alturas de uma rocha que queria tocar o céu. Súbito, sentiu uma leve tontura. Devia ser a pressão, coisa normal em escaladas. Respirou mais fundo. Talvez fosse mesmo hora de dar uma parada, e de ligar para a mulher.
O urubu insistia numa estranha amizade com ele, rondando por ali. Ou não seria amizade, e sim um mau agouro, um instinto de ave carniceira de tê-lo morto como comida? Sacudiu a cabeça para afastar esse pensamento e trazer à baila a sempre lúcida razão. Nenhuma vertigem deveria lhe tirar o controle lógico das circunstâncias. E nada de preocupações! A mulher passava bem, com certeza. Dois dias antes, ela tinha escorregado na laje de pedra sob uma cachoeira e quase fraturou o joelho. O médico tirou radiografias, enfaixou o local contundido, pediu repouso absoluto, receitou a medicação analgésica. Ele não tinha culpa de as férias dela terem terminado ali. E nem ela. Foi obra do acaso, do destino, do dedo de Deus, sabe-se lá. E se ninguém tinha culpa, ele não podia desperdiçar a oportunidade de escalar o pico de suas ambições...
Um grito do guia avisou: a fenda da chaminé se aproximava. Então, nada de descanso agora. Toda concentração seria pouca. Olhou os telhados de Teresópolis bem lá embaixo. A senhora dona da pousada devia estar obedecendo ao seu pedido de a cada hora ir ao quarto deles ver se a mulher precisava de algo, se sentia dores. E o bebê dentro dela? Gravidez de dois meses podia ser arriscada em sustos, quedas... Ora, ninguém tinha culpa da queda! Ou tinha? Na verdade, a mulher queria passar o Réveillon, dali a três dias, em Copacabana. Era seu desejo antes de ser mãe pela primeira vez. Ele a dissuadiu da idéia, falando das maravilhas da Serra dos Órgãos, do Dedo de Deus, seu desejo de alpinista. Sim: ele tinha manipulado a vontade dela em proveito próprio. E ela devia estar aflita, porque ele ainda não telefonara. Devia desistir? Voltar para ficar com ela? Ceder a emoções de medo e culpa? Não! Nem era hora de pensar nisso. Tomou fôlego e, absolutamente determinado, seguiu os guias para dentro da fenda na rocha, rumo ao topo.
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