Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Portas


Nivaldo Pereira
Texto publicado no jornal Pioneiro. 07/08/2005

Era pequeno, peludo. Parecia um pequinês, só que mais comprido. Ela o percebeu ali, numa das calçadas do centro da cidade, como que perdido. Voltou a vê-lo na quadra seguinte, já andando na frente. E foi somente quando ela se deteve para examinar uns óculos de sol numa vitrine é que constatou: o cão esperava pacientemente, olhando para cima. Que amor!, pensou. E afagou-lhe a cabeça, de leve, com uma pontinha de nojo por talvez ele ser um bicho de rua, fedido e pulguento. Mas não. Ele parecia bem tratado demais para não ter um dono.

Ela foi andando, e o cãozinho firme, acompanhando-a, faceiro. Estaria com fome? Seria por isso que ele a seguia? Ela pensou em comprar alguma comida para aquele bichinho tão simpático, uma recompensa por tê-la escolhido como protetora no meio de centenas de pedestres apressados. Mas comprar o quê? Por ali não havia nenhuma loja de produtos para animais e ela não sabia direito o que os cachorros comem. Precisava passar no banco e não tinha tempo para entrar num supermercado, até porque o cachorro não ficaria na porta esperando que ela voltasse com a ração numa latinha aberta automaticamente. Ah! Na esquina havia uma banca de lanches e, decerto, encontraria alguma coisa que cachorro coma.

Riu sozinha quando teve o ímpeto de pedir um cachorro-quente para o cão de rua. E se fosse salsicha picadinha? Achou graça também ao se imaginar perguntando ao dono da barraca se cachorro gosta de salsicha picada. Resolveu arriscar: uma salsicha bem cortada num saquinho. O homem reclamou do pedido. Sem problemas, ela pagaria por um cachorro-quente completo. Chamou o cachorro num canto e, abaixando-se, ofereceu o petisco. Ele cheirou daqui e dali, comeu um pedaço, depois outro, até terminar. Ela ficou satisfeita com a boa ação, afagou o cão em despedida e andou em direção ao banco.

Olhou para trás. Sim, ele continuava em seu encalço. Ela não deu importância. No mínimo, aquele safadinho estava acostumado a sobreviver assim, conquistando a simpatia dos passantes anônimos que o alimentassem. Ela entrou na porta giratória do banco, deixando o cão na rua, atarantado com a barreira de vidro. No caixa eletrônico, teclou extrato, depósito em cheque, retirada, pagamento de conta. Entretida em cifras, assustou-se com uma lambida na perna. Ele! No mesmo instante, o guarda do banco veio avisar que não podia entrar cachorro ali. Explica daqui, contesta dali, “não é meu”, “mas ele está com a senhora...”, e ela saiu do banco, irritada com a discussão provocada por um cão de rua muito espaçoso.

Lá fora, deu um basta no cachorro. Fica aí, não me segue, vai embora, já te dei comida, me esquece! O cão não deu a mínima para as reclamações. Ela pensou em lascar um croque na cabeça dele, um tapinha que o afastasse, mas achou muita crueldade. Caminhou para casa. Lá a coisa se resolveria. O cão foi junto, às vezes passando na frente dela, impondo sua presença risonha com o rabo abanando de felicidade. Diante da porta do prédio, ela abriu rápido e entrou, fechando-a no focinho daquele amigo desconcertante. Olhou pelo vidro fosco: o vulto peludo continuava parado, esperando. Não havia mais nada a fazer. Aquilo era uma despedida definitiva. Ela subiu as escadas e entrou no apartamento.

Vestiu a roupa velha de ficar em casa e conferiu os recados na secretária eletrônica. Nada. Ligou o computador, em busca de mensagens. Nenhuma. Sentou-se na escrivaninha em frente à pilha de trabalhos a avaliar. Pequenas dissertações sobre Platão e a natureza do amor, feitas pelos alunos de filosofia. Amor, amor. O olhar pousou no porta-retrato, ainda com a fotografia do último namorado. Quanto tempo? Por que mantinha ali aquele retrato dele, com a desculpa de agora serem amigos, se o enxergava sempre como o amante que fora? Desde quando fechara a porta na cara do amor, presa a ressentimentos e modelos dos quais não conseguia se libertar? A porta na cara! Lembrou do cãozinho na rua. Olhou pela janela, mas a marquise do térreo não a deixou ver se o bicho ainda estava por perto. Quis descer e conferir. Não. Não devia se comover e trazer um cachorro para dentro de um apartamento pequeno. Sentou no sofá e ficou olhando a porta da rua.

Horas depois, casa escura, noite feita, ela continuava ali, imóvel. Foi ainda no escuro que caminhou decidida para a cômoda e atirou o porta-retrato com fúria contra a parede. Estilhaços, barulho. Duas lágrimas pela face. E a certeza de que alguma porta secreta no coração estava se abrindo.

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