Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 14/01/2011
De manhã, Porto Alegre. Aceno para o lotação que passa. Um lugar apenas, ao lado de um homem de uns 40 anos, com uns papéis na mão e uma carteira de trabalho. Mal acabo de sentar, ele já me pergunta algo, que não escuto, mas percebo um forte hálito de pinga. Fecho a cara e o corpo: papo de bêbado, àquela hora, nem pensar. Ele quer saber se sou advogado. Digo que não, sem olhá-lo. Ele quer saber minha profissão. Insiste. Chuto: professor.
- Professor de quê?
Ai, meu saco! Fico calado. Ele volta à carga:
- Professor de quê?
- Literatura – penso que essa área vá cortar o papo furado.
- Literatura estuda o quê?
- Não sei.
- Como não sabe? Ensina literatura e não sabe o que a literatura estuda?
Faço-me de surdo, olhando à frente. Impulso de levantar, mas fico. Ao lado, uma senhora de cabelo azul balança a cabeça, solidariedade ao meu azar.
- Literatura estuda o quê?
Invoco toda compaixão pisciana pelos loucos e ébrios. Respondo que a literatura estuda os livros. Ele dá uma breve trégua. E retorna:
- Literatura é aquele negócio de barroco, romantismo...
- Isso aí – e puxo uma tromba de meter medo em carranca.
- Eu tô ligado. Literatura também estuda os tipos de porquês. Tu sabe usar os quatro tipos de porquês?
Eu de cara feia, irritado.
- Sabe ou não sabe?
- Não sei, cara.
- Tem porquê separado e junto, com acento e sem acento. Peguei o professor! Agora tu vai sair daqui e contar aos teus amigos: encontrei um gambá no ônibus, o cara tava mamado, mas sabia os quatro tipos de porquês. Um cara ligado.
A insana lucidez me dá ganas de rir, mas mantenho a brabeza. O lotação chega ao centro da cidade.
- Vou descer aqui – diz, saindo sem tchau.
Lá na frente, garante ao motorista que não incomodou ninguém. A senhora de cabelo azul me olha, irônica. Na parada, ele rasteja ao descer do ônibus, para não registrar a passagem. Estranhamos a cena. O motorista explica:
- Ele pediu carona, tava na frente do presídio.
Lá fora, o cujo aborda os passantes, pedindo cigarros. Sai fumando. Louco, bebum ou marginal, ele acertou. Cá estou, contando o caso do gambá que sabia usar os porquês. Um cara ligado...
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