Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







sexta-feira, 30 de julho de 2010

Comida



Nivaldo Pereira
Crônica publicada no jornal Pioneiro, 2007

“Coma o bife.”
“Não quero. Bife é carne de vaca morta.”
“Minha filha, a gente precisa comer pra viver. Com todo ser vivo é assim. Na natureza, os animais carnívoros se alimentam de outros animais. É lei da vida, desde que o mundo é mundo. Coma e não discuta.”
“Não quero ser responsável por deixar um bezerro sem mãe e muito menos ajudar a devorar o cadáver de uma pobre vaquinha indefesa.”
“Foi seu irmão quem pôs essas idéias malucas em sua cabeça, não foi? Deixe ele lá, ser vegetariano. Mas você é pequena, está em idade de crescimento e precisa se alimentar direito. Carne é proteína.”
“Mas tem outros tipos de proteína nos vegetais.”
“Ah, tá querendo bancar a esperta, não é? E já que quer se mostrar a sabichona em matéria de comida, me responda uma coisa. Você não quer comer carne com pena da vaca ou do bezerro, mas não tem pena dos vegetais? Não tem pena da pobre cenourinha que devia viver feliz na horta até parar em seu prato pra ser mastigada?”
“Cenoura não é bicho. Não anda, não grita, não sente dor...”
“Como sabe que ela não sente dor? Já foi perguntar isso a ela?”
“Então eu não vou comer mais nada que seja vivo. Só chocolate.”
“Ah, te peguei. Sabe de que é feito o chocolate? Do cacau, fruto de uma árvore vivinha da silva. “
“Então eu como salgadinhos.”
“Feitos de amido de milho, umas espigas lindas e felizes na roça.”
“Então eu não como nada, nunca mais.”
“Ai você vai morrer, vai ser enterrada, e os bichinhos embaixo da terra vão te comer todinha. É melhor comer o bife, se não quiser virar comida dos vermes de debaixo da terra...”
“O bife tá frio.”
“Eu já esquento no micro.”
“Mas eu não quero nem a cenoura nem o arroz. Um cadáver por dia basta.”
“Menina, pára com essa conversa de cadáver. Seu irmão me paga. Você sempre foi impressionável, e ele ainda fica enchendo sua cabeça com essas besteiras.”
“Besteira nada. Ele disse que as pessoas mais evoluídas não comem carne.”
“Ah, tá, e ele se acha muito evoluído... Brigou ontem no telefone com a namorada e xingou a coitada com nomes horríveis. Semana passada deu um soco num amigo no futebol. Muito evoluído ele...”
“Ele disse que Gandhi não comia carne.”
“Por isso o Gandhi era tão magro e amarelo.”
“Esse bife tá muito vermelho, tem sangue ainda na carne. Assim eu não consigo.”
“Já estou perdendo a paciência contigo. Você já tem dez anos e não é nenhuma bebezinha pra ficar nessa birra. Se não quer comer, não coma. Pode ficar doente, pode morrer se quiser...”
“Quer que eu morra, é? Você não gosta de mim...”
“Ei, que é isso, minha filha? Se eu não gostasse de você não estaria perdendo meu tempo lhe fazendo comer, pra ficar saudável e bonita. É por seu bem que eu quero que você coma direitinho. Dá aqui o prato. Vou passar melhor esse bife até ele ficar tostadinho.”
“Muito queimado eu não gosto.”
“Vai ficar no ponto, pode deixar.”
“Faz um sanduíche com ele. Assim eu nem vejo a carne.”
“Certo, meu bem.”
“Mãe?”
“O que foi agora?”
“Pão de sanduíche também é vivo?”
“O pão vem da farinha, que vem do trigo; leva ovo, que vem da galinha; manteiga, que vem da vaca...”
“Então traz o bife sem pão mesmo.”

3 comentários:

  1. HUAHUAHUAHUHA

    Cara, genial. Muito bom esse teu post.
    E me fez lembrar de uns pensamentos meio tortos [ou nem tanto] que tenho tido esses dias.

    A verdade é que, se formos tentar ver razão nas coisas, saber se vale a pena, se realmente é bom realizar tal coisa, não veremos sentido em nada [ou, para ser mais boazinha, em quase nada]. Se não quisermos pirar de vez, é melhor fazer certas coisas por impulso, sem pensar demais, procurar problemas em coisas que poderiam ser simples se realizadas no ímpeto, no calor da hora. Depois a gente vê no que dá, hehe.

    Um abraço, Nivaldão.

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  2. Adorei ler novamente! Um dos melhores... O texto faz um círculo perfeito! E concordo com a Erica Ferro...
    Temos que tentar simplificar mais a vida... Ir fundo demais numa ideia fixa pode acabar com a leveza e o prazer!

    Abraço, queridão!

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  3. Rindo D+,adoreii, você me fez lembrar dos meus pimpolhos ainda pequenos.Temos que simplificar a vida,concordo aí com o nosso colega Kennedy Jeremias, na refeição é hora da criatividade,se não tudo transforma em guerra quando eles são crianças,ou então são eles que manipulam agente rsrsr.
    Beijos Nivaldo.

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