Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
sexta-feira, 29 de outubro de 2010
Ouvindo Otto
O nome do novo disco do pernambucano Otto parafraseia Kafka no começo de A Metamorfose: "Certa manhã acordei de sonhos intranquilos". A capa, agressiva e enigmática, esconde um disco delicioso e envolvente. Ando ouvindo bastante o Otto e muito o recomendo. Minha preferida é a regravação, em tom brega respeitoso, da clássica Naquela Mesa. Confiram o som de Crua, que abre o CD.
Um escorpiano
Descer aos infernos, conhecer a noite escura da alma, e de lá voltar renovado, ou curado, é tarefa do signo de Escorpião. O primeiro grande sucesso do escorpiano Milton Nascimento (nascido a 26 de outubro de 1942) diz quase tudo desse signo. Travessia, parceria com Fernando Brant, lançada em 1967, fala de perda e superação, do desejo de morte como descoberta da vida, do desencanto realista de quem faz com o próprio braço o seu viver. Como bom escorpiano, Milton é contido, calado, mas visceral no que cria. Eu adoro ele, sempre adorei. E graças à força escorpiônica, ele enfrentou a morte nos anos 1990 e renasceu ainda com mais brilho. Longa vida ao Bituca!
Estrangeiro em toda parte
"Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma"
Fernando Pessoa
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 29/10/2010
No Rio Grande do Sul, sempre perguntam-me de onde venho, por causa do sotaque estranho, que se revela baiano. Há pouco, no Rio de Janeiro, quando me apresentei baiano, alguém logo replicou: “e essa cara do sul, e esse sotaque do sul?” Mas o pior é na Bahia. Na minha terra. É um festival de ironias, e relembro duas delas, para reforçar essa minha percepção de ser estrangeiro em toda parte, como definiu o Pessoa.
Ano passado, em Salvador, meio do ano, fui sozinho à praia, no velho e lindo Porto da Barra, me dissolver nas águas de Iemanjá. Aluguei cadeira e sombreiro, pois fugir do sol, ainda que tímido, também é uma sina, decretada pela minha dermatologista. Um livro, uma cerveja, aquele visual, e era tudo o que eu precisava, quando passa o ambulante e me aborda com um sorridente “diga aí, gaúcho!” Eu rebati, carregando no sotaque: “eu sou baiano, cara!” Ele me olhou desconfiado, e emendou: “então tá trabalhando muito, viu, meu rei”, em alusão ao meu bronze pálido. Que desaforo! Não provar minha baianidade em minha própria terra! Mandei ao inferno o ambulante, quando ele me perguntou se eu conhecia os livros de Jorge Amado, como se eu nunca tivesse pisado na Bahia. Já se viu?
Um ano antes, no verão, eu tinha ido com uma amiga a um ensaio carnavalesco do Ylê Aiyê, cuja sede fica em frente à escola onde cursei o ginásio, no bairro do Curuzu. Eu não pisava ali fazia uns 25 anos, ou mais. Fui tomado pelas recordações, anos 70, quando aquelas ruas, hoje tão estreitas, pareciam largas aos meus olhos de menino. Emocionado com as memórias, só percebi a piriguete quando ela perguntou: “você fala português?” Ah, não, no meio de tanto turista gringo rosado, justo eu pareci a ela o seguramente estrangeiro? Minha amiga rolava de rir. Na real, ninguém ali acreditaria que eu tivesse estudado por anos na escola em frente. Ironia da vida.
É, meu caro Pessoa, alguma razão deve haver para se ser estrangeiro em toda parte. O mundo todo é casa para essas almas sem casa e que já não cabem no velho berço. Tampouco cabem em berço algum. Como mutantes. Estranhos estrangeiros.
quinta-feira, 28 de outubro de 2010
Contos astrais: O escorpião
Nivaldo Pereira
Publicado no Pioneiro, 2006
Pouco depois de abrir o velho chalé da família e escancarar as janelas para ventilação, Corina acompanhou da sacada a partida do carro. Paulo ia guiando. Ceres não tinha carteira de habilitação e precisava esperar por Ademar, o namorado, que chegaria em instantes na rodoviária de Canela. Corina estava curiosa em conhecer pessoalmente o rapaz que fisgara o coração da sua melhor amiga. Certamente seria divertido este final de semana serrano, ainda mais com um providencial friozinho em pleno novembro. Se ela gostasse do Ademar, e se ele e o Paulo se dessem bem, quem sabe poderiam ser ele e a Ceres os padrinhos do casamento anunciado para o ano seguinte. Uma rajada de vento frio indicou que a noite chegava. Resolveu pegar lenha no porão, porque lareira acesa seria fundamental nesse astral esperado de amigos em festa.
Abriu a porta do porão e sentiu o bafejo bolorento de lugar fechado sem sol. Quando criança, morria de medo de descer sozinha ali. Mas um dia, já adolescente, discutiu com a mãe e, tomada por uma raiva surda, foi se abrigar exatamente no breu úmido de debaixo da casa. Ficou lá durante horas, inerte, ouvindo o chiar dos camundongos e os passos dos pais lá em cima, preocupados com o amuado desaparecimento da filha. Quanta bobagem! Mas pelo menos enfrentara o medo do porão. Agora o interruptor no topo da escada não obedecia ao seu comando. Lâmpada queimada. Onde haveria outra? Haveria outra? Pensou na lanterna do pai, na cozinha. E foi assim, de lanterna acesa em punho, que Corina avistou a pilha de lenha no meio das tralhas do cubículo. Encheu a cesta de vime com a madeira cortada, cuidando de focar bem a luz da lanterna para não ferir a mão. Foi quando avistou uma sombra se mexer por entre as achas, pequena, mas veloz. Afastou-se a tempo de reconhecer um escorpião avermelhado sumindo para debaixo da pilha de lenha. Ela subiu correndo a escada, fechando a porta com estrondo. No dia seguinte, o Paulo daria um jeito naquele invasor...
Mal chegou na sala e já ouviu a voz do noivo: “Cori, chegamos”. E a Ceres: “Vem conhecer o Adé”. Ainda tremia no peito o susto com o escorpião, e talvez por isso ela jamais esperasse um outro baque em seqüência, quando o coração quis ir à boca. Meu Deus! Era ele! Sim, o mesmo cara! Aqueles olhos pretos, inconfundíveis, mesmo agora, tantos anos depois... Sentiu naquele olhar intenso de outros tempos que ele também a reconhecera. Ela se controlou o mais que pôde e estendeu a mão, dissimulada: muito prazer, a Ceres fala de ti o tempo todo, é Adé pra cá, Adé pra lá, que bom te conhecer, a casa é de vocês. Lá dentro dela, um vulcão de estranheza, uma frieza defensiva. Um segundo, ou nem isso, e já gozando de sua condição de futuro anfitrião, Paulo puxou Ademar pelo braço e o conduziu ao quarto de hóspedes. Toda cúmplice, Ceres se chegou à amiga: “Não te falei que ele é magnético? Notei que ele te deixou sem graça, Cori. Ele adora fazer isso...” E soltou uma risada de menina grande.
Cori farejou que aquela noite seria intensa. Fechou-se no banheiro e a memória refluiu. Ali mesmo, em Canela, casa de uma amiga, festa adolescente, quantos anos tinha?, catorze?, ele tomando Coca sozinho no jardim, do lado do grande balanço. Os olhos. Ele fixa nela, encara, não entrega. Ela gosta. O aceno com o balanço. Original. Ela vai. Eu te balanço. Devagar. Pouquinho mais forte, pra ver de cima? Assim tá bom, tá bom. Mais devagar, por favor. Assim não, vou descer. Chega, por favor. Pare, pare. Chega, a corda vai partir, posso quebrar o pescoço. Vou gritar por socorro. Mas e se os pais vierem correndo, como explicar?, por que aceitara ser empurrada por um desconhecido? Impulso louco de soltar as cordas e cair. Queda fatal. Morrer de vergonha e de raiva e ainda matar de remorso esse infame. De repente, ele a ampara, cessando o balanço com um abraço. O olhar. Calor. Ela o empurra, furiosa. Corre para casa. Dias de terror. Ou seriam dias de fascínio pelo menino louco, sem nome? Entocada em casa. Sai desse quarto, guria. Briga séria com a mãe. O refúgio no porão, apesar do medo. Horas de frio, horas infernais. Sim, onze anos se passaram. Agora ele é o Adé, o tão falado cirurgião namorado da amiga Ceres e que viera de ônibus de Porto Alegre.
Logo mais, fogo aceso, o vinho bateu forte para ela já na segunda taça. Ceres e Adé se beijavam na sacada. Paulo cozinhava. Ela arrumava a mesa. Algazarra no jantar. Tudo muito rápido. Ou seria a embriaguez? Olhares furtivos. Olhos negros que ainda gostam de encarar. Amiga de pileque, palhaçando a mesa com piadas. Noivo de platéia. Ela enlouquecendo: a antiga ferida, restos de pânico, um ódio guardado, e uma fissura descabida por aqueles olhos de comprovada crueldade. O fogo baixou na lareira. Paulo foi buscar mais lenha no porão. Ceres servia vinho. Ademar acariciava o cabelo da namorada, mas num canto de olho... Desgraçado! Como pode fazer isso? Paulo falou algo lá de baixo, mas ela não escutou, de tão tomada pelo clima algo sórdido da mesa de jantar. O noivo voltou com um feixe de lenha nos braços, comentando a luz queimada. Só aí ela lembrou do escorpião. E se o bicho tivesse atacado o Paulo?
O sangue em suas veias alternava correntes quentes e geladas. Nunca sentira algo assim? Ou já sentira? Alegou sono, vinho forte, cabeça rodando, e foi deitar. E ficou no escuro do quarto, olhos arregalados, ouvindo as risadas da Ceres e um ou outro timbre do Paulo. Nem sinal da voz do caladão Ademar... Uma hora depois, quando Paulo veio deitar ao seu lado, ela o agarrou de súbito com um misto de desejo e grosseria, unhas e dentes, feito pantera no cio. Agiu com uma intensidade e uma desenvoltura nunca demonstradas em anos de relacionamento. Ele brincou: “Vou comprar mais desse vinho...” Ela ficou quieta, preocupada. Ainda haveria o sábado e o domingo na mesma casa que o Adé... E havia um escorpião no porão...
sexta-feira, 22 de outubro de 2010
Só tem corredor? Oh dor!
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 22/10/2010
Que poltrona, senhor? Qualquer janela. A história se repete nos guichês das rodoviárias: a maioria dos passageiros prefere viajar no assento da janela. Eu não fujo à regra. E experimento a frustração geral quando a atendente informa: só tem corredor. Criei uma teoria para explicar essa opção. Como viajar evoca as aventuras de outros tempos, quem escolhe a poltrona do ônibus é sempre a nossa criança interior, aquele menino ou menina que ainda nos habita. Porque criança de lei não abre mão da janela. Nunca.
É certo que já houve tempos em que os ônibus lotavam quais latas de sardinha. Alí, tadinho de quem sentava no corredor, pois teria uma turba a cair-lhe por cima a cada curva. Em caso de calor, a chave da ventilação era a janela, na jurisdição do outro passageiro, a quem também pertencia o manejo da cortina contra o sol. No quesito visual, o da janela tinha a paisagem lá de fora, sempre em movimento, fazendo a viagem fluir, enquanto ao do corredor cabiam monótonas panças e bundas. Ninguém era besta de preterir o poder e o movimento da janela.
Acontece que mudou tudo. Os ônibus interurbanos, que fazem viagens de fato, já não transportam passageiros em pé (em tese), e as janelas não mais se abrem, por conta da climatização interna. Sendo assim, quem se senta no corredor tem muito mais espaço, para além da guerra de cotovelos pela posse do apoio do braço entre as poltronas. Aliás, esse suporte separador é mais sujeito a invasões e atentados territoriais do que o velho Tratado de Tordesilhas. Às vezes, o janeleiro despreza a paisagem para manter a vigilância do suporte de braço e não deixar o vizinho se espraiar.
Ok, o passageiro da janela sempre terá uma paisagem mais aberta. Mas, e nas viagens noturnas, por que a mania da janela prossegue? E se a gente constatar que quem viaja na janela é mais vulnerável em caso de acidentes? Ora, tudo isso é mero bom senso adulto, que nada vale quando surge a possibilidade da viagem – e de aventura – e a nossa criança interna, teimosa e competitiva, já pula gritando: a janela é minha! E mostramos a língua aos demais.
sábado, 16 de outubro de 2010
Insetos e homens segundo Kafka
O escritor tcheco Franz Kafka é tema da sexta edição do projeto Luz do Verbo, que a Do Arco da Velha Livraria e Café promove na próxima quarta-feira, 20 de outubro, às 20h, em Caxias do Sul. Com a apresentação do poeta Marco de Menezes e do jornalista Nivaldo Pereira, o encontro literário pretende discutir a importância de Kafka e de sua obra-prima, A Metamorfose, na literatura moderna ocidental. O ator Maquiam Silveira faz participação especial, com a leitura de um conto do autor. A entrada é franca.
Nascido em Praga, Kafka (1883-1924) viveu apenas 40 anos, mas legou ao mundo obras fundamentais em sua capacidade de focar temas da modernidade, como a alienação do sujeito num universo impessoal e burocrático, a falta de sentido e o desconforto existencial. Na novela A Metamorfose, a história do caixeiro-viajante que acorda transformado num inseto monstruoso virou uma fábula sobre assuntos relevantes do século XX, entre os quais a desumanização e a solidão.
A naturalidade realista com que Kafka descreve o inusitado, e mesmo o absurdo, tornou-se uma marca sua, influenciando diversos outros artistas em múltiplas áreas. O escritor colombiano Gabriel García Márquez sempre assumiu que a leitura de A Metamorfose foi decisiva em sua literatura vista como realismo fantástico. O adjetivo “kafkiano” passou a denominar qualquer clima de pesadelo e opressão. Irônico e lúcido, Kafka denunciou o mal-estar da civilização atual. Nas palavras dele, ‘um livro tem de ser o machado para o mar congelado dentro de nós”.
Adiantando: em clima bem mais ameno, a última edição do projeto Luz do Verbo, em 17 de novembro, vai homenagear Vinicius de Moraes, o poeta da paixão.
Projeto Luz do Verbo
Tema: Insetos e homens segundo Kafka
Dia 20 de outubro, quarta-feira, 20h
Do Arco da Velha Livraria e Café (Rua Os 18 do Forte, 1.690, fone 3028.1744)
Entrada franca
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
Folhas de magia
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 15/10/2010
Um pouco mais de magia na vida. É talvez o que precisamos, nesses tempos de apatia. Taí, gostei: contra apatia, magia! Quem sabe, assim possamos resgatar o encantamento, o entusiasmo pela vida. Não falo de magia como feitiço ou bruxaria, numa esfera religiosa, mas no sentido de disposição para a surpresa. Um pequeno susto bom, um abrir de olhos, um riso discreto, uma parada no passo, qualquer reação nova ante o inédito de quando ousamos mudar de rumo – isso é magia.
Essa miúda alteração de humor, ainda que não passe de sutil tropeço na rotina, pode desalojar velhas estruturas internas, afrouxar a sisudez da alma e do corpo, abrir para o viver mais leve. Pois só na leveza podemos experimentar delicadezas que transformam, feito afago de asa de anjo. Somente quando os olhos se abrem mais, ou mudam de foco, e o coração se expande nalguma súbita alegria, somente aí a magia cumpre seu papel final de derramar em nossas cabeças uma chuva dourada de entusiasmo.
Mas ok, leitor, você pode argumentar que não se pode sair por aí, ruas afora, em busca de pequenas epifanias. O mundo está complicado, perigoso até. Eu concordo, mas replico que há livros, livros à mancheia, tesouros guardados convidando a súbitas paisagens dentro e fora da cabeça. Livro é ponte, passagem para outros mundos. Não é à toa o passaporte ser um documento em forma de livro. Ainda não inventaram nada melhor que o livro para acender idéias e nos fazer ascender aos céus do existir.
Esta crônica, sobre livros e leituras, é um exemplo do que estou a defender. Há vários anos, criei o hábito de sempre escrever sobre esse tema durante a Feira do Livro de Caxias do Sul. Criei uma rotina, mas faço por onde a magia entrar: que cada texto seja diferente dos anteriores, no tom, na abordagem; que seja divertido para mim escrevê-lo, que tudo seja leve e positivo. Ah, e na fé de que meu prazer vai contaminar você, leitor.
Então, amigo, ainda tem Feira do Livro neste final de semana. Compre um passaporte para algum outro mundo. Entregue-se à viagem da leitura. O resultado, em sabedoria e emoção, será pura magia.
terça-feira, 12 de outubro de 2010
A espada e o elixir
Nivaldo Pereira
Texto publicado no Pioneiro, 08/10/2010
Na pedra lisa da gruta, à luz da vela artesanal, a silhueta do velho se agigantava em sombras fantasmagóricas. Frêmitos de medo ondulavam a alma do rapaz. Não medo do velho, o eremita a quem viera pedir ajuda, mas medo da jornada por iniciar. Preste bem atenção, pedia o homem de barbas brancas, porque a atenção é uma das armas na luta primeira contra o monstro guardião do portal. Três cabeças tem a fera, e devem ser cortadas de um só golpe, sob pena de se multiplicarem na razão de uma para três. Sua espada deve estar untada em vontade, disciplina e tempo. Sem isso, continuava a alertar o velho, de pouco vai adiantar adentrar ao reino mágico, pois até as maravilhas e sapiências fenecem sem uma entrega voluntariosa. E o rapaz sorveu cada palavra do mestre.
Fora da gruta, o sol e o calor tépido logo o encheram de coragem. Sacou da cinta a espada, depositou-a sobre uma rocha como num altar. E agora? Como lustrá-la de vontade, disciplina e tempo? Isso o mestre não ensinara, mantendo-se mudo quando o rapaz repetiu a questão. E disso o jovem já sabia, avisado por experientes cavaleiros: o sábio nunca entregava o que carecia de ser descoberto por cada um. Vontade, disciplina e tempo. Ah, houvesse tudo junto em poções de elixir... Pode até ser que exista, mas em que longínquo reino, encerrado em alguma torre guardada por um dragão? Buscar o elixir seria fugir da jornada que o aguardava, ali bem perto.
A noite avançou, o rapaz acomodou-se junto à rocha. Precisava pensar, e foi nesse fluxo que adormeceu. Num sonho, uma donzela de manto azul sussurrou-lhe: pergunte-se por que deseja entrar no reino mágico, e dentro de si vai encontrar o lustro da espada. Ele acordou de pé. Por que entrar no reino? Porque ali, diziam todos, encontra-se sabedoria poder e liberdade, e precisava disso tudo para sagrar-se cavaleiro. Era o que mais queria: ser alguém. Era seu foco de ação imediata. E era já.
Assim, munido da espada da atenção, o jovem decepou as cabeças do monstro que exala dispersão, preguiça e adiamento e que impede a entrada dos fracos ao reino mágico chamado Livro.
sábado, 2 de outubro de 2010
No divã da MPB
Nivaldo Pereira
Publicada no Pioneiro, 04/03/2006
Há pouco mais de um século, desde que Sigmund Freud revolucionou as ciências humanas com o conceito de inconsciente, as artes nunca mais foram as mesmas. Todo criador achou ali um coerente respaldo para falar dos deuses e demônios que habitam o interior do homem. Sonhos, traumas, duplos, projeções, complexos, medos, rejeições, vinganças, tudo, tudo pôde virar arte, porque tudo era humano de fato. A música popular, é claro, não ficou de fora. A partir da década de 1960, com a contracultura divulgando terapias e conceitos psicanalíticos, a MPB deitou de vez no divã e pôs-se a falar abertamente de nossos tabus.
O Divã, por sinal, é o nome de uma composição do Rei Roberto Carlos, lançada em 1972. A narrativa é uma autêntica sessão de análise, com o personagem deitado no famoso sofazinho de consultório e desfiando as lembranças remotas da infância, com a confissão: “Essas recordações me matam, por isso eu venho aqui”. O problema em questão é a permanência desse passado no presente. E surge na canção uma imagem traumática: uma festa, um grito na multidão, o sangue no linho branco, e a “paz de quem carregava em seus braços quem chorava”. O analisando não se sente inteiramente compreendido pelo analista: “Eu venho aqui me deito e falo / Pra você que só escuta, não entende a minha luta / Afinal de que me queixo, são problemas superados”. Mas, mesmo assim, parece confiar no poder da própria palavra como libertação desses ecos do passado, ao concluir: “Eu apenas desabafo confusões da minha mente.”
No ano anterior, o Rei já tinha feito sucesso com Traumas, falando do choque da percepção das mentiras contadas um dia por um pai, que aconselhava o filho a não mentir, mas que teria se esquecido de dizer a verdade. O personagem aqui sofre com as distorções que agora precisa inventar, do mesmo jeito com que o pai no passado o protegia da dura realidade com fantasias. E assume: “Talvez um dia pro meu filho eu também tenha que mentir / Pra enfeitar os caminhos que ele um dia vai seguir.” Nessa mesma canção o Rei fala de um dos efeitos psicológicos dos sonhos e pesadelos, que é revelar velhos problemas adormecidos, e ilustra a atitude comum humana: “Durante o dia a gente tenta com sorrisos disfarçar / Alguma que coisa que na alma conseguimos sufocar”. Poucas vezes o cancioneiro popular tinha descido tão fundo nas camadas subterrâneas da mente humana.
O conhecido Complexo de Édipo, antes camuflado em lacrimosas canções de elegia à rainha do lar, recebeu um tratamento visceral em 1976, quando Gilberto Gil declarou, na pungente Pai e Mãe: “A mulher que amei, que amo, que amarei / Será sempre a mulher como é minha mãe”. Na mesma época, o conterrâneo baiano Caetano Veloso foi na mesma direção, com direito a outras projeções, em Minha Mulher: “Quem vê assim pensa que você é muito minha filha / Mas na verdade você é bem mais minha mãe.” Mulher, mãe e filha na mesma figura, e sem culpa: viva Freud! Aliás, Caetano não demoraria a comprar mais uma de suas brigas com a mídia, quando foi criticado por aparecer na capa do álbum Muito (1978) com a própria mãe, Dona Canô. O irmão da Bethânia atacou o psicológico dos críticos: “Têm vergonha desse negócio de gostar de mãe”.
Do lado feminino dessa questão, a intensa Ângela Ro Ro, em seu disco de estréia, de 1979, já aparecia com uma canção chamada Minha Mãezinha, em que botava em pratos fundos e limpos a rivalidade das meninas com as mães e o corte do cordão umbilical. Começa assim: “Sua voz, tão difícil de calar, não me diz mais nada / Já não carrega mais o doce mel da abelha-rainha / Me deixa em paz minha mãezinha.” O tema é chumbo grosso e pauta constante dos divãs, entre culpas e lágrimas, porque raras moças têm a permissão cultural de encararem a mãe e atacar, como na canção: “Você, antes de mãe, é uma mulher.” Talvez só mesmo Ro Ro, com sua coragem de assumir coisas como: “Essa tristeza que o amor me deu / É a coisa mais bonita dentro do meu eu.” No geral, pinta bloqueio, e a gente fica como Roberta Miranda: “No quarto escuro do meu ego sem resposta.”
Seria hora de falar de Chico Buarque, porque esse homem sabe como ninguém falar das complexidades ocultas humanas. O que dizer, por exemplo, do amor e ódio fundidos em Atrás da Porta? Mas isso fica para uma outra sessão, meu paciente leitor, porque seu tempo acabou e o espaço aqui também. Se a tristeza bater nesse dias, e o divã estiver ocupado, pegue seu disco favorito e deixe as emoções fluírem em catárticas notas musicais. E até a próxima sessão.
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
Ouvir e ler estrelas
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 01/10/2010
Nesta sexta-feira, logo depois de o Sol libriano descer no poente, em conjunção com Saturno, e o audacioso Áries surgir no horizonte leste, nascerá oficialmente mais uma Feira do Livro em Caxias do Sul. A Lua, no minguante, estará em Câncer, na parte mais funda do céu. Isso indica um evento sóbrio e eficiente, focado no fundamental. Como eu vivo aprendendo, com Bilac e outros poetas, a ouvir estrelas, tentarei traduzir toques do mapa astral da Feira em sugestões de leituras.
Sol conjunto com Saturno aponta direto para os clássicos, aqueles livros que, de tão bons, jamais envelhecem. Como relacionamentos e justiça são temas librianos, aposte nos desatinos amorosos de Madame Bovary, de Flaubert, e no Crime e Castigo, de Dostoiévski. Na poesia, o velho e bom soneto sempre cai bem, seja de Camões ou Vinicius.
A Lua canceriana reforça o tom passadista da Feira, e acrescenta intimismo, evocando textos sobre história e fundas emoções. Quem ainda não o fez, eis a melhor hora para viajar ao passado gaúcho com Erico Verissimo em O Continente ou deixar-se deslindar na alma por Clarice Lispector em Laços de Família. E as biografias estão em alta.
Regente do ascendente Áries, Marte está conjunto com Vênus, em Escorpião. Uau!, isso é pura paixão, em intensidade e instinto. O que pode ser melhor que As Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, e Dom Casmurro, do Machado? Ok, a garotada pode preferir a saga vampiresca crepuscular e genéricos, e estará no mesmo clima de paixões infernais.
Júpiter e Urano, conjuntos em Peixes, opõem-se a Mercúrio, em Virgem. Penso em livros de cunho científico ou filosófico, sem precisar ser de auto-ajuda, e relatos de viagens. A oferta é vasta no gênero. Ah, A Poética, de Aristóteles, sempre é iluminador e útil para quem cria.
No tom econômico de Saturno, não deixe de garimpar os balaios de ofertas e de livros usados. Sábio é investir no saber, o bem que nunca acaba, diria o velho mestre Saturno, segurando a lanterna da inteligência. E ler é deixar essa luz revelar universos dentro e fora de nós.
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