Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Nada muda no zodíaco


Nivaldo Pereira
Texto publicado no jornal Pioneiro, 15/01/2011

Em que planeta o astrônomo Parke Kunkle andou hibernando por séculos? Ao propor a alteração das datas correspondentes aos 12 signos do zodíaco, a partir da inclusão da constelação de Ophiucus, o astrônomo só demonstra nada saber de astrologia. Já houve um tempo, há milênios, em que os signos zodiacais, gerados pela relação do Sol com a Terra, eram ilustrados por constelações no espaço distante, como um mero pano de fundo. No entanto, devido ao movimento do eixo da Terra, que se desloca um grau a cada 72 anos, faz muito que os cenários das distantes constelações não ilustram mais as mesmas regiões dos signos do zodíaco. Ou seja, o signo de Áries já não coincide com o lugar da constelação de Áries. Desde a antiguidade os astrólogos sabem desse fenômeno, chamado de precessão dos equinócios.

A astrologia praticada no Ocidente é batizada de tropical, porque define os signos (faixas invisíveis de energia) dividindo a órbita da Terra em torno do sol em 12 regiões iguais, a partir dos pontos de começo das estações – os equinócios e solstícios. Nada a ver com as constelações ao fundo, e tudo a ver com as estações. O atual calendário ocidental, gregoriano, ajustou, há séculos, o começo do zodíaco para em torno de 21 de março.

Existe outra corrente de astrologia, praticada na Índia, que é chamada de sideral por levar em consideração as antigas constelações. Mesmo essa corrente, contudo, faz os devidos ajustes da precessão dos equinócios. Assim, antes de querer redescobrir a pólvora, ou ter seus 15 minutos de fama, o astrônomo Parke Kunkle devia estudar as noções da astrologia ocidental. Ele ia descobrir que os mais destacados astrônomos da história, como Galileu, Newton, Kepler e Copérnico, também eram astrólogos.

Em resumo, leitor, se falarem em constelações, o assunto não diz respeito à astrologia ocidental e nada muda em seu signo.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Tupi or not tupi?


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 21/01/2011

Olá, ouvintes. Este é o programa Mistura Brasil, nas ondas do seu rádio. No clima do verão, hoje vamos vibrar com o som esperto das guitarras brasileiras. Mas, antes de a gente falar em guitarra brasileira, vale lembrar que esse instrumento já foi execrado por muita gente boa aqui no Brasil. Em 1967, nomes como Elis Regina, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré e Gilberto Gil fizeram coro na famosa passeata contra a guitarra, no centro do Rio. Naqueles tempos engajados, a guitarra era vista como símbolo do imperialismo norte-americano e ofensiva à música nacional. Gilberto Gil logo percebeu o mico, porque meses depois misturava guitarra com berimbau na tropicalista Domingo no Parque. A Tropicália era a arte da mistura, a cara do Brasil, esse país mestiço.

Falando em Brasil mestiço, lembro de uma entrevista em que o escritor Jorge Caldeira ligava nossa vocação para a mistura aos índios tupis. Diferentes de outras etnias nativas do recém-descoberto Brasil, os tupis valorizavam os relacionamentos com os estrangeiros e com outras tribos. Para eles, a entrada do diferente deixava a tribo mais forte. A assimilação era uma saída melhor que a dos antropófagos, que se achavam mais fortes depois de literalmente devorar o estranho. Muito se fala da miscigenação nacional, mas é bacana saber que essa disposição já estava aqui, com os tupis. Ou seja, nosso gosto pela mistura é autenticamente brasileiro.

E vamos falar de duas turmas que estão fazendo maravilhas na guitarra, com tempero local. A banda BaianaSystem resgata a sonoridade da guitarra baiana, a invenção de Dodô e Osmar, na década de 1940, que gerou o som do trio elétrico. A rapaziada da BaianaSystem faz essa guitarra regional dialogar com tudo, até com a música eletrônica. Misturança boa como a do vatapá. E a outra banda vem de Belém do Pará: La Pupuña. A batida da popular guitarrada paraense se mescla com lambada, surf music, ritmos caribenhos, pegadas de brega e muito mais. Impossível ficar parado. Melhor que pato no tucupi é sacolejar ao som da La Pupuña.

Misturas do Brasil, a grande nação tupi. Aumenta o som, DJ!

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Portas


Nivaldo Pereira
Texto publicado no jornal Pioneiro. 07/08/2005

Era pequeno, peludo. Parecia um pequinês, só que mais comprido. Ela o percebeu ali, numa das calçadas do centro da cidade, como que perdido. Voltou a vê-lo na quadra seguinte, já andando na frente. E foi somente quando ela se deteve para examinar uns óculos de sol numa vitrine é que constatou: o cão esperava pacientemente, olhando para cima. Que amor!, pensou. E afagou-lhe a cabeça, de leve, com uma pontinha de nojo por talvez ele ser um bicho de rua, fedido e pulguento. Mas não. Ele parecia bem tratado demais para não ter um dono.

Ela foi andando, e o cãozinho firme, acompanhando-a, faceiro. Estaria com fome? Seria por isso que ele a seguia? Ela pensou em comprar alguma comida para aquele bichinho tão simpático, uma recompensa por tê-la escolhido como protetora no meio de centenas de pedestres apressados. Mas comprar o quê? Por ali não havia nenhuma loja de produtos para animais e ela não sabia direito o que os cachorros comem. Precisava passar no banco e não tinha tempo para entrar num supermercado, até porque o cachorro não ficaria na porta esperando que ela voltasse com a ração numa latinha aberta automaticamente. Ah! Na esquina havia uma banca de lanches e, decerto, encontraria alguma coisa que cachorro coma.

Riu sozinha quando teve o ímpeto de pedir um cachorro-quente para o cão de rua. E se fosse salsicha picadinha? Achou graça também ao se imaginar perguntando ao dono da barraca se cachorro gosta de salsicha picada. Resolveu arriscar: uma salsicha bem cortada num saquinho. O homem reclamou do pedido. Sem problemas, ela pagaria por um cachorro-quente completo. Chamou o cachorro num canto e, abaixando-se, ofereceu o petisco. Ele cheirou daqui e dali, comeu um pedaço, depois outro, até terminar. Ela ficou satisfeita com a boa ação, afagou o cão em despedida e andou em direção ao banco.

Olhou para trás. Sim, ele continuava em seu encalço. Ela não deu importância. No mínimo, aquele safadinho estava acostumado a sobreviver assim, conquistando a simpatia dos passantes anônimos que o alimentassem. Ela entrou na porta giratória do banco, deixando o cão na rua, atarantado com a barreira de vidro. No caixa eletrônico, teclou extrato, depósito em cheque, retirada, pagamento de conta. Entretida em cifras, assustou-se com uma lambida na perna. Ele! No mesmo instante, o guarda do banco veio avisar que não podia entrar cachorro ali. Explica daqui, contesta dali, “não é meu”, “mas ele está com a senhora...”, e ela saiu do banco, irritada com a discussão provocada por um cão de rua muito espaçoso.

Lá fora, deu um basta no cachorro. Fica aí, não me segue, vai embora, já te dei comida, me esquece! O cão não deu a mínima para as reclamações. Ela pensou em lascar um croque na cabeça dele, um tapinha que o afastasse, mas achou muita crueldade. Caminhou para casa. Lá a coisa se resolveria. O cão foi junto, às vezes passando na frente dela, impondo sua presença risonha com o rabo abanando de felicidade. Diante da porta do prédio, ela abriu rápido e entrou, fechando-a no focinho daquele amigo desconcertante. Olhou pelo vidro fosco: o vulto peludo continuava parado, esperando. Não havia mais nada a fazer. Aquilo era uma despedida definitiva. Ela subiu as escadas e entrou no apartamento.

Vestiu a roupa velha de ficar em casa e conferiu os recados na secretária eletrônica. Nada. Ligou o computador, em busca de mensagens. Nenhuma. Sentou-se na escrivaninha em frente à pilha de trabalhos a avaliar. Pequenas dissertações sobre Platão e a natureza do amor, feitas pelos alunos de filosofia. Amor, amor. O olhar pousou no porta-retrato, ainda com a fotografia do último namorado. Quanto tempo? Por que mantinha ali aquele retrato dele, com a desculpa de agora serem amigos, se o enxergava sempre como o amante que fora? Desde quando fechara a porta na cara do amor, presa a ressentimentos e modelos dos quais não conseguia se libertar? A porta na cara! Lembrou do cãozinho na rua. Olhou pela janela, mas a marquise do térreo não a deixou ver se o bicho ainda estava por perto. Quis descer e conferir. Não. Não devia se comover e trazer um cachorro para dentro de um apartamento pequeno. Sentou no sofá e ficou olhando a porta da rua.

Horas depois, casa escura, noite feita, ela continuava ali, imóvel. Foi ainda no escuro que caminhou decidida para a cômoda e atirou o porta-retrato com fúria contra a parede. Estilhaços, barulho. Duas lágrimas pela face. E a certeza de que alguma porta secreta no coração estava se abrindo.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Porquês

Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 14/01/2011

De manhã, Porto Alegre. Aceno para o lotação que passa. Um lugar apenas, ao lado de um homem de uns 40 anos, com uns papéis na mão e uma carteira de trabalho. Mal acabo de sentar, ele já me pergunta algo, que não escuto, mas percebo um forte hálito de pinga. Fecho a cara e o corpo: papo de bêbado, àquela hora, nem pensar. Ele quer saber se sou advogado. Digo que não, sem olhá-lo. Ele quer saber minha profissão. Insiste. Chuto: professor.
- Professor de quê?
Ai, meu saco! Fico calado. Ele volta à carga:
- Professor de quê?
- Literatura – penso que essa área vá cortar o papo furado.
- Literatura estuda o quê?
- Não sei.
- Como não sabe? Ensina literatura e não sabe o que a literatura estuda?
Faço-me de surdo, olhando à frente. Impulso de levantar, mas fico. Ao lado, uma senhora de cabelo azul balança a cabeça, solidariedade ao meu azar.
- Literatura estuda o quê?
Invoco toda compaixão pisciana pelos loucos e ébrios. Respondo que a literatura estuda os livros. Ele dá uma breve trégua. E retorna:
- Literatura é aquele negócio de barroco, romantismo...
- Isso aí – e puxo uma tromba de meter medo em carranca.
- Eu tô ligado. Literatura também estuda os tipos de porquês. Tu sabe usar os quatro tipos de porquês?
Eu de cara feia, irritado.
- Sabe ou não sabe?
- Não sei, cara.
- Tem porquê separado e junto, com acento e sem acento. Peguei o professor! Agora tu vai sair daqui e contar aos teus amigos: encontrei um gambá no ônibus, o cara tava mamado, mas sabia os quatro tipos de porquês. Um cara ligado.
A insana lucidez me dá ganas de rir, mas mantenho a brabeza. O lotação chega ao centro da cidade.
- Vou descer aqui – diz, saindo sem tchau.
Lá na frente, garante ao motorista que não incomodou ninguém. A senhora de cabelo azul me olha, irônica. Na parada, ele rasteja ao descer do ônibus, para não registrar a passagem. Estranhamos a cena. O motorista explica:
- Ele pediu carona, tava na frente do presídio.
Lá fora, o cujo aborda os passantes, pedindo cigarros. Sai fumando. Louco, bebum ou marginal, ele acertou. Cá estou, contando o caso do gambá que sabia usar os porquês. Um cara ligado...

sábado, 8 de janeiro de 2011

O ano de Gal

Uma das minhas grandes expectativas para este ano de 2011 é o disco que Gal Costa está gravando, somente com canções inéditas de Caetano Veloso. Sou fã de Gal desde sempre, e sei que faz muito que ela não nos dá um repertório à altura dos bons tempos de musa tropicalista. Gosto de cantoras, procuro acompanhar as novas e novas safras de vozes que surgem na MPB, e vivo me certificando de que quase todas elas, de Marisa Monte a Céu, de Adriana Calcanhotto a Tulipa Ruiz, devem algo a Gal Costa, seja no tom do canto, no ecletismo ou na performance. Libriana do começo do signo, Gal tem neste ano a chance de uma bela virada na carreira, vide os trânsitos de Plutão, Urano e Júpiter para seu Sol. Estou torcendo por isso. Confiram este vídeo de 1973, com Gal cantando Da Maior Importância, de Caetano, citando os signos de Escorpião e Sagitário.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Desarvorados


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no jornal Pioneiro, 07/01/2011

O vivente está vendo aquele jerivá, lá embaixo, no vale? Não? E o pinheiro nativo na beira do arroio? Também não? Não vê o jacarandá florido em roxo na encosta? Nem o bosquezinho, feito ramalhete, composto pela quaresmeira, pela paineira e pela corticeira do banhado? Não vê nem o ipê amarelo na exibição gratuita de sua formosura? Pois me perdoe a sinceridade: o arvorado vivente anda desarvorado.

Arvorar. Quisera esse verbo bonito tivesse apenas o sentido imediato de plantar árvores, arborizar. Mas o vivente homem prefere se arvorar em ser a cria maior da natureza. Arvora-se em estar acima de tudo, qual divindade. Pensa-se esperto, germinando tolices.

Germinar. Quem dera a brotação milagrosa de cada semente na terra inspirasse o vivente no deixar fluir em equilíbrio a totalidade da vida. Qual nada! Somente o que nele germina são ganância e arrogância. Chão fértil é, esse vivente, para as voragens de seu baixo instinto, raízes do egoísmo.

Enraizar. Ah, pudesse ele imitar as plantas e buscar no fundo da terra a razão de seu crescer, num partilhar da mesma seiva com todos os seres. Mas não, o que enraíza no vivente homem é o desejo de posse, a terra cercada em farpas, o muro, eletrificada folhagem.

Folhar. E cobre-se o vivente com as folhas de sua ambição desmedida. Ao semelhante, fornece não a sombra boa, refrigério amigo contra o calor, mas sim a sombra do poder, a sombra burra de um respeito vertido em quantidade de bens, flores sem alma.

Florescer. E anseia esse bicho pensante por ver realizados todos os seus desejos mesquinhos. O mundo seria perfeito se fossem todos iguais a ele. E o que devia ser beleza, cor da criação, promessa de vida, flor do ser, vira simulacro, embuste, ilusão. E surge da flor da compulsão o fruto do vazio.

Frutificar. O que esperar de quem desde a semente se desvirtuou do natural? Que sabor tem a obra de quem se arvorou em ser superior? Quem morde essa maçã envenenada? Quem come desse pomar de tolos?

Felizes são as árvores, porque não pensam. Feliz o vivente que ainda pode ver em cada árvore uma irmã. Feliz de quem ainda não se desarvorou.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Contos astrais: Capricórnio


Nivaldo Pereira
Texto publicado no jornal Pioneiro

Ele já sabia que do alto do pico dava para ver, ao longe, toda a Baía da Guanabara, com seus recortes naturais a irradiar calores praianos. Respirou fundo e preparou-se para a grande escalada: quase mil e setecentos metros, até o cume do imponente Dedo de Deus. Uma ligeira névoa ainda encobria a paisagem do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Os dois guias iam à frente, parecendo alheios ao poder da grande rocha e à grandeza da empreitada que se iniciava. O mais velho devia ter uns 40 anos. O outro, um rapagão de não mais que 25. Na véspera, quando do acerto da aventura, o mais velho foi curto e seco: “Você está pagando para obedecer ao que eu mandar.” O ríspido tom de autoridade da sentença do outro despertou-lhe uma ponta de raiva: afinal, ele tinha experiência em escaladas, não era nenhum irresponsável. Como sempre, a razão se impôs: fosse ele o guia, agiria da mesma forma. Numa jornada de alto risco como aquela, não se pode dar ao guiado o direito a improvisos. É obedecer, e pronto.

Duas horas mais tarde, cumpridas as etapas iniciais, ele já se encontrava dependurado na corda de náilon, sentindo o frio do vento abismal. As mãos untadas de carbonato de magnésio, para melhor segurar, buscou o telefone celular no bolso do colete. Devia ligar para ela, avisar que tudo corria bem, saber como andavam suas dores. Mas o aparelho estava sem operação, talvez por causa da altitude. Pensou em perguntar ao guia e ao assistente se os celulares deles funcionavam. Não quis incomodar. Haveria no caminho algum degrau mais saliente, onde pudesse descansar, e ali, quem sabe, telefonaria para a mulher. Mais ansioso estava com a chegada do trecho conhecido como chaminé, uma fenda que exigiria artifícios de aranha na escalada, com pés e mãos dispostos na geometria que o guia explicara lá embaixo. Até a noitinha já deviam estar de volta ao sopé da montanha, tendo ele deixado seu registro de conquista no topo do majestoso Dedo de Deus.

A vista dali era espetacular, com Teresópolis parecendo uma cidadezinha de brinquedo. Localizou a área onde ficava a pousada e onde a mulher o aguardava, possivelmente vendo tediosos programas matinais na televisão. Nisso um deslizar de asas chamou sua atenção, entre os estampidos secos de um ou outro pino cravado na rocha. Era o planar de um urubu. Num segundo a memória o conduziu a um tempo remoto da infância, quando morrera a velha cabra leiteira do avô. O cadáver tinha sido jogado num matagal e ele ia todo dia espiar o trabalho dos urubus, indiferente ao mau cheiro e ao enxame de moscas. Menino calado, criado pelos avós. Sem emoção, olhava os restos da cabra e pensava no que seria de si quando os avós morressem também. Menino estranho, que aprendeu cedo a não contar com ninguém para viver.

Achou graça de como um urubu o tinha remetido a lembranças tão antigas.A mulher achava esquisito ele nunca falar da infância e nem dos pais. É que a vida para ele tinha realmente começado quando acabou o serviço militar e, com a pequena herança deixada pelo avô, abriu a seguradora patrimonial que até hoje lhe toma todo o tempo. Achava nobre garantir a posse do que se conquistou com muito suor. Era boa a sensação de ser importante para a sociedade E era muito bom perceber esse valor ali, acima de tudo, nas alturas de uma rocha que queria tocar o céu. Súbito, sentiu uma leve tontura. Devia ser a pressão, coisa normal em escaladas. Respirou mais fundo. Talvez fosse mesmo hora de dar uma parada, e de ligar para a mulher.

O urubu insistia numa estranha amizade com ele, rondando por ali. Ou não seria amizade, e sim um mau agouro, um instinto de ave carniceira de tê-lo morto como comida? Sacudiu a cabeça para afastar esse pensamento e trazer à baila a sempre lúcida razão. Nenhuma vertigem deveria lhe tirar o controle lógico das circunstâncias. E nada de preocupações! A mulher passava bem, com certeza. Dois dias antes, ela tinha escorregado na laje de pedra sob uma cachoeira e quase fraturou o joelho. O médico tirou radiografias, enfaixou o local contundido, pediu repouso absoluto, receitou a medicação analgésica. Ele não tinha culpa de as férias dela terem terminado ali. E nem ela. Foi obra do acaso, do destino, do dedo de Deus, sabe-se lá. E se ninguém tinha culpa, ele não podia desperdiçar a oportunidade de escalar o pico de suas ambições...

Um grito do guia avisou: a fenda da chaminé se aproximava. Então, nada de descanso agora. Toda concentração seria pouca. Olhou os telhados de Teresópolis bem lá embaixo. A senhora dona da pousada devia estar obedecendo ao seu pedido de a cada hora ir ao quarto deles ver se a mulher precisava de algo, se sentia dores. E o bebê dentro dela? Gravidez de dois meses podia ser arriscada em sustos, quedas... Ora, ninguém tinha culpa da queda! Ou tinha? Na verdade, a mulher queria passar o Réveillon, dali a três dias, em Copacabana. Era seu desejo antes de ser mãe pela primeira vez. Ele a dissuadiu da idéia, falando das maravilhas da Serra dos Órgãos, do Dedo de Deus, seu desejo de alpinista. Sim: ele tinha manipulado a vontade dela em proveito próprio. E ela devia estar aflita, porque ele ainda não telefonara. Devia desistir? Voltar para ficar com ela? Ceder a emoções de medo e culpa? Não! Nem era hora de pensar nisso. Tomou fôlego e, absolutamente determinado, seguiu os guias para dentro da fenda na rocha, rumo ao topo.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Um capricorniano


O signo do realismo e das montanhas escarpadas tem uma expressão maravilhosa na poesia do parnambucano João Cabral de Melo Neto. Capricorniano nascido em Recife, a 9 de janeiro de 1920, este João, que não gostava de música e tinha horror a lirismo, produziu uma obra poética de absoluto rigor estético, cerebral e nada sentimental. A poesia de João vem do concreto, do espaço e do tempo, da aridez da terra. Poesia de Saturno, signo da cabra. Vejam trechos do seu célebre Poema(s) da Cabra. No osso, no esqueleto, sem recheio, e, por isso mesmo, puramente essencial.

5

A cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.

Se a serra é terra, a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.

A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.

Por isso quem vive da cabra
e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.

7

A vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).

Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.

É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.

Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa.

domingo, 2 de janeiro de 2011

O primeiro olhar


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 02/01/2011

Foi ali pelo meio da década de 1970, no interior baiano, que a prima Lindaura entrou na casa de meus pais, seguida de uma procissão de curiosos, e largou sem delongas o motivo da visita: trazia uma irmã de Rosinha que nunca tinha visto uma televisão na vida! Enquanto meu irmão corria para ligar a enorme Colorado RQ, no canto da sala de jantar, ouvíamos a história da menina, mocinha já. Morava nos matos da outra margem do Rio Paraguaçu, sem luz elétrica, e nunca pudera ver uma tevê ligada. Nos segundos de espera pelo surgimento da imagem na tela em preto e branco, todos os olhares convergiam para os olhos da menina.

Mal a televisão se acendeu, a menina soltou um grito: “uai, dá choque”, e grudou-se no braço de Lindaura. Nós todos, moradores da casa mais a platéia de uns 20 meninos vadios, caímos na risada. Que choque seria esse que só ela sentira? E fomos vendo na reação daquela tabaroa o sabor da descoberta de um mundo – explicando aqui que tabaréu e tabaroa designam, na Bahia, os matutos dos grotões. Logo a televisão começou a apresentar o programa Mundo Animal. Os gritos da menina passaram a ser de prazer e assombro. Olha uma cobra! Minha Nossa Senhora, que bicho é esse? O bicho vem pra cá?

Naquela tarde, fixos nas retinas da menina donzela de um hábito já tão corriqueiro para nós, nossa sensação era de poder. Sabíamos tudo de Tarcísio e Glória, de novelas e seriados, de desenhos e programas mais, enquanto ela, a coitada dos matos, sentia na pele o choque da eletricidade estática da tevê e se comprazia feito boba. Já não tínhamos mais na memória o nosso primeiro contato com a novidade. E os tais olhos virgens da menina eram, assim, a nossa nova tela inaugural, nosso deleite de crianças.

Como uma onda eletromagnética, essa história adormecida me veio à memória no instante em que pensei sobre o que escrever na primeira crônica de 2011. Sei lá, acho que desejo a mim e aos leitores uns olhos inéditos. Olhos de se espantar, se encantar, abertos para a surpresa. Ou olhos que se maravilhem com o maravilhar de outros olhos. Peço um ano de inéditos olhares. Amém.