Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
Amores e clichês
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 22/06/2007
Quis ter um amor feito os dos romances ingleses. Encontraria ela numa alameda do Hyde Park. Olhares se cruzariam sob os chapéus, o olhar dela lembrando uma raposa da charneca, desconfiado; o dele, uma névoa úmida, olhos de fog. Ele a seguiria, e ela moraria numa casa vitoriana, de amplo jardim, com olmos, choupos e tílias formando uma sebe bem cortada, e um pequeno lago com nenúfares. Apesar do bucolismo do entorno, a casa teria um aspecto sombrio, de janelas cerradas. Mulher misteriosa. Guardaria segredos mortais? Cometeria um crime sem deixar vestígios? Teria no lenhador um amante? Riscos demais. Melhor mudar de história.
Daí quis viver um affair como nos filmes franceses. Ele e ela seriam colegas da Sorbonne. Sairiam flanando, ela cheia de charme, com a boina caindo-lhe de lado. Reclamariam no café habitual: a mesa “deles” estaria ocupada. Aí sentariam irritados perto da vidraça e falariam de tudo. Louvariam as glórias nacionais e lamentariam a falta de gênio das novas gerações. Mundo tedioso, carência de revoluções. Súbito, ela revelaria o desejo de voltar para o ex-namorado, mas que poderiam continuar juntos, amantes da tarde, para que um amor assim, tão raro em frescor, jamais sucumbisse à monotonia dos dias. Ele reagiria com raiva. Discutiriam alto e muito. Huumm... Muita falação, amor ruidoso. A história deve ser outra.
Bom mesmo seria um amor de canção portuguesa. Ele, marinheiro; ela, moçoila das margens do Tejo. O beijo quente da despedida duraria dias, meses, na lembrança da boca, quando o navio singrasse pelos altos mares. Toda noite, da amurada do navio, perto da popa, ele olharia para os lados de Portugal. No porto, vendo as ondas baterem nas pedras do cais, ela lançaria ao grande mar o sal de suas lágrimas. Mas algum dia viria algum infante das terras de Espanha e a consolaria no peito. E ele sequer a encontraria na volta do mar. Rapariga sem devoção! Essa história não serve...
Então, aqui e agora, em casa, ele somente telefonaria para ela: “Cansei de amor inventado. Vem, eu esqueço tudo, vamos começar de novo, como numa sexta de Carnaval.”
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Ah, o amor! Como não ser clichê algo tão bom, universal?
ResponderExcluirNivaldo, tua criatividade diverte. Acho que este é o traço que mais marca teus escritos e que sempre me encanta.
Sugiro, inclusive, desenvolver mais as referidas histórias - os leitores adorariam.
Um grande abraço
Rejane Romani Rech
Lindo texto!
ResponderExcluirUm bom romance sempre tem suas intrigas, como Jane Austen bem pode provar, e nem sempre o 'final feliz' é o esperado, mas é a característica mais fantástica da vida, penso eu: ser imprevisível, se tudo fosse como gostaríamos na certa seria tedioso, não é mesmo?
Rejane, que bom chamares de criatividade minha mania insuportável de não querer escrever sempre igual. Eu me divirto procurando caminhos, e que bom que essa diversão passa para o texto. Abração pra ti.
ResponderExcluirAna,Jane Austen e Emily Brontë me deram o clima inicial do parágrafo inglês. Elas são maravilhosas, não? Thanks pelo toque e presença.