Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
sábado, 25 de setembro de 2010
Contos astrais: A balança
Nivaldo Pereira
Publicado no Pioneiro, 14/10/2006
Da porta da sala, ela virou a cabeça de um lado para outro, conferindo a arrumação do ambiente por diferentes ângulos. Flores, ok; almofadas, idem; tudo certo também na ondulação da manta do sofá para dar um premeditado ar de despojamento. As velas, prontas para serem acesas. O que estaria faltando? O incenso! Tinha que ter um incensinho queimando bem na hora em que ele tocasse a campainha. Já tinham falado nisso, e ele adorava aromas orientais. Lavanda ou flor de laranjeira? Lavanda é mais suave; flor de laranjeira poderia trazer um astral mais exótico, algo cigano... Não, nada muito forte: senão ele poderia pensar nela como uma atirada, como se quisesse seduzi-lo na primeira visita. Vá de lavanda! A luz cada vez mais tardia do poente varava a cortina de tule branco. Ela amava o crepúsculo. Pôs a tocar outra vez o disco de Adriana Calcanhotto. Pena que ainda faltasse meia hora para ele chegar. Quem sabe depois dessa noite nunca mais ela sofresse a dor de não poder compartilhar um pôr-do-sol...
Uma réstia de sol cruzou estranhamente, àquela hora, o quarto dele. Olhou pela janela, procurando uma explicação. Lá estava. Alguém abrira uma vidraça em ângulo no prédio em frente, projetando daquele lado a luz oposta do poente. Ele ainda estava de toalha atada à cintura, depois do banho demorado, olhando em dúvida as duas mudas de roupa estendidas sobre a cama. Jeans ou aquela calça mais sóbria? Manga comprida ou uma camiseta com os óculos estilizados de John Lennon? Pensou em ligar para algum amigo, pedindo uma dica, mas achou isso uma frescura tamanha. Vestiu e desvestiu cada peça, até optar por outras: uma calça velha, de brim verde, e uma camiseta com a estampa do rosto de uma Brigitte Bardot anos 60 fazendo beicinho. E se ela pensasse nisso como um convite a um beijo? Seria bom, muito bom... Rindo feliz com essa possibilidade, borrifou discretamente o perfume no pescoço e examinou no espelho os dentes. Estava pronto.
Ela acendeu as velas tão logo o sol desceu no horizonte. Ajeitou mais uma vez as flores no jarro. Seria bom pôr na mesinha de centro uns livros diferentes. Quais? Poesia, sempre! E poesia tem que ser do Vinicius. Num átimo trouxe da estante uma antologia de sonetos em capa rosada. De tudo a esse amor ela seria atenta, por isso o esmero, por isso o cuidado. Ele haveria de levar dali a imagem de uma mulher refinada, mas simples. Juntou ao livro uma revista de decoração e um álbum com fotografias de casas do interior brasileiro. Pensando melhor, escondeu na gaveta a revista, porque ele poderia supor que tudo ali tinha sido obra de ensaios copiados, e não a criação legítima de uma alma sensível. Acendeu uma luminária no chão. Sim, o ambiente exalava um conforto convidativo, bem como ela queria. Na cozinha, já tinha conferido tudo muitas vezes: taças, o vinho branco na geladeira, os petiscos. De prontidão, os ingredientes para o jantar, mais tarde, ao sabor de conversas deliciosas ao pé do fogão. Dez minutos para a hora marcada!
Já na rua, ele olhou o relógio no painel do carro. Dava tempo de comprar alguma coisa para levar, mesmo que ela tivesse deixado claro que ele não se importasse com isso. Flores? Romântico, mas muito clichê... Ah! Ela haveria de gostar do queijo caseiro da dona Edite. Estava perto. Estacionou e entrou no armazém antigo já pronto para fechar. A dona o reconheceu e, como se já soubesse o que ele queria, e sabia mesmo, foi logo divulgando o sabor do queijo que chegara naquele mesmo dia. Meio quilo? Ela pôs a bola num dos pratos da velha balança, e o peso no outro. O queijo estava bem mais pesado, mas dona Edite o retirou assim mesmo. Ele reclamou. Não era justo. Ela estaria no prejuízo. Ele queria pagar o valor certo. Mas a gorducha senhora o olhou com carinho e autoridade e sentenciou: “Meu jovem, você precisa aprender a receber. Você é um bom cliente. Deixe eu ser boa para você também. É um direito meu.” Ele sorriu, desconcertado. Pagou e saiu, agradecido.
Ela olhava o relógio a cada segundo. Começou a se preocupar. E se ele achasse todo o cenário da casa muito artificial, como que montado para agradá-lo? E se não ficasse à vontade? E se nem viesse? O telefone tocou. Ela gelou. Certamente era ele, dando uma desculpa qualquer. Sim, era ele. Ela gelou ainda mais. Mas ele estava lá embaixo e apenas esquecera o número do apartamento. Ela quase chorou de alegria. Correu a acender o incenso, não sem antes trocá-lo de impulso por um de rosas vermelhas. Olhou-se no espelho, sacudiu os cabelos, ajeitou a alça do sutiã sob a bata indiana branca e bordada. O coração aos pulos. A campainha. A porta aberta. Dois beijinhos nas faces. Olhares.
Que cheiro ótimo, ele disse. Não vivo sem incenso, ela disse. Ele olhando as coisas da sala, ela explicando tudo. Aqui e ali um roçar de cotovelos, de dedos. Frêmitos nos corações Ele encantado com a delicadeza de uma pequena balança prateada na estante. E ela: “Presente da minha formatura em Direito”. Ele olhando a vista da janela, à luz do crepúsculo ainda resistente. Ela falou da beleza especial daquele poente. Algo inebriado, ele contou a ela a surpresa de ter visto o mesmo pôr-do-sol, mas indiretamente, pelo reflexo na vidraça de um vizinho. Ela riu, e disse: “O segundo sol!”. E os dois acharam que algo forte estava acontecendo. E os dois se sentiram um. Arrebatados, nem perceberam a dança da chama de uma vela refletida na balança da estante. Na mão dele, esquecida, a bola do queijo, pronta a ser repartida.
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