Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







segunda-feira, 20 de setembro de 2010

No altar da MPB


Rita Ribeiro saúda orixás e entidades no show Tecnomacumba

Nivaldo Pereira
Crônica publicada em 29/04/2006

Talvez a música seja a forma de arte mais presente na vida humana, porque podemos criar sonoridades melódicas em qualquer situação, seja um simples batucar de dedos ou um assovio na rua. Música é transporte para outras dimensões. Pode espantar males ou atrair melancolia, pode conduzir ao céu da nossa doce saudade ou ao inferno das nossas piores lembranças. Daí que a música vira passaporte oficial para o transcendente. Deve ser raro um ritual religioso sem música, venha ela de um címbalo tibetano, de um tambor africano ou de um cântico na missa. Certamente os deuses gostam de sons e ritmos. Por isso, é comum a música popular sair do profano para tocar a esfera do sagrado, louvando a Deus ou falando de aspectos do lado transcendente da vida. Em nossa rica MPB, não foram poucas as vezes em que o palco virou extensão do altar.


Como hierarquias e tradições fazem parte do aspecto religioso humano, vou começar das alturas olimpianas, falando do Rei Roberto Carlos. Em 1970, ele lançou-se como menestrel absoluto do divino com a evocativa Jesus Cristo, bebendo na fonte melódica do negro “soul” das igrejas protestantes norte-americanas. Aquele coro, aquele refrão e aquelas imagens de nuvens brancas e multidões caíram sobre o Brasil como um maná do céu. A canção passou rapidinho das paradas de sucesso para o repertório das missas católicas. E o Rei nunca mais parou de dizer “obrigado, Senhor”, de falar do tamanho da sua fé e de pedir a mão a Nossa Senhora. No maior país católico do mundo, não cabe mesmo a um rei desprezar as sagradas tradições cristãs.

Foi por sua devoção inabalável que Roberto Carlos descartou a canção Se Eu Quiser Falar com Deus, que Gilberto Gil tinha composto especialmente para ele. Essa história de ter que “virar um cão”, “comer o pão que o diabo amassou” e “caminhar decidido numa estrada que ao findar vai dar em nada”, definitivamente, não cabem na crença monolítica do Rei. São conceitos de influência oriental, coisas de um relativista Gilberto Gil, que já faz canções falando de procissões alienantes, orixás, I-Ching e retiros espirituais nos quais teria que decifrar ambos os lados de sua equação metafísica. Gil talvez seja dono da mais sofisticada visão religiosa da MPB. Com a alma cheirando a talco, junta num mesmo palco o Deus Sol e a Deusa Música. E ainda acredita que arte e ciência são ambas filhas de um “Deus fugaz que faz num momento e no mesmo momento desfaz”. A igreja do Rei fica bem longe desse terreiro quântico...

Mas, em se tratando da expressão musical de um país miscigenado, onde o catolicismo oficial convive com outras crenças de origem diversa, a MPB também abre seu altar para um ritual ecumênico. No famoso disco do movimento tropicalista, de 1968, Bat Macumba emendava com o Hino do Senhor do Bonfim. Vinicius de Moraes e Baden Powell já tinham lançado uma série de sambas-afros, tirando os orixás africanos dos terreiros clandestinos e trazendo-os para as ruas e palcos. E saravá virou bordão musical. Ampliaram o que Dorival Caymmi tinha feito com o sincretismo baiano, ao render elegias tanto para Iemanjá quanto para o Senhor dos Navegantes. Pois os tropicalistas comeram tudo isso num ritual antropofágico e abriram caminho até para um Raul Seixas cantar depois seu Rock do Diabo.

Enquanto isso, na onda do musical hippie internacional Jesus Cristo Superstar, o cabeludo Antônio Marcos vivia um roqueiro em crise existencial na balada Oração de um Jovem Triste. Numa igreja, diante de uma imagem de Cristo, ele tem uma iluminação mística sem alucinógenos: “Vestido em ouro te imaginei / E tão humilde eu te encontrei / Cabelos longos iguais aos meus / Tu és o Cristo, filho de Deus”. O povo adorou. E o cantor voltou com o hino O Homem de Nazareth, em 1973. E as igrejas adotaram a canção também.

O altar da MPB é mesmo ecumênico. Cabem nele a modinha popular Cálix Bento, resgatada por Milton Nascimento, e a roda da Pomba-Gira, na Moça Bonita de Ângela Maria; cabem o canto caipira da Romaria de Renato Teixeira a Nossa Senhora Aparecida e o ponto da Mamãe Oxum com Zeca Baleiro; cabem a Ave Maria do Morro e a Ave Maria da Rua. Cabem até novas indagações sobre a figura de Deus, como na Invocação de Chico César: “Serás Deus ou Deusa? Que sexo terás?” E termino essa louvação à liberdade absoluta de crença e de canto vestindo as roupas e as armas do guerreiro santo e rezando o refrão suingado: “Salve, Jorge! Salve, Jorge! Salve, Jorge!”

Um comentário:

  1. A arte é expressa de várias formas, com diferentes ideias, ilimitada. A música certamente é o maior exemplo dessa variedade, está em todos os ambientes, com diferentes mensagens e interpretada sempre de forma nova, sempre tendo uma forma própria pra cada um.

    Belíssimo texto!

    "Jesus Cristo" também foi pro Roberto Carlos um acerto com aquela parte da sociedade que não via com bons olhos a Jovem Guarda e todas as suas modas e manias, definitivamente um marco na carreira dele...

    Muito bom texto, realmente!

    Beijo

    ResponderExcluir