Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







terça-feira, 24 de agosto de 2010

Contos astrais: Virgem


Nivaldo Pereira

Ninguém merece isso! Uma hora e meia de espera! É muita falta de respeito! Por que diabos marcam hora de consulta? Se fosse ele o atrasado, no mínimo nem seria atendido. Olhou de novo o relógio. Quis pegar outra revista de futilidades, mas já tinha folheado todas. Será que revista de consultório médico não pode ter conteúdo? A irritação reavivou o incômodo nas entranhas. Não uma dor aguda, mas uma sensação esquisita, como se um bicho estivesse caminhando pelas volutas de seu intestino. Deve ser um alien, pensou, imaginando-se explodindo para libertar um pequeno monstro intergaláctico que devia ter se alojado em seu interior. No dia da primeira consulta, o médico perguntara se ele era calmo ou controlado. Teve que rir quando admitiu um auto-controle absoluto. Como ser diferente? Como não se importar com tanta imbecilidade, tanto desrespeito?

A mão suava, segurando a coleção de radiografias dos exames feitos. Em casa ele tinha olhado o laudo dos resultados: termos médicos, de difícil compreensão. Foi pesquisar cada um na internet. Ficou assustado com umas tais diverticuloses. Não foi disso que morreu o Tancredo Neves? No resto, a certeza de uma úlcera em formação. Já sabia de tudo: o médico iria prescrever uma dieta rigorosa, remédios mais fortes que os da gastrite e calma, muita calma. Baita ironia recomendar calma ao paciente quando o próprio doutor não o respeita, deixando-o nessa sala horrenda de tons pastéis e quadros de uma paz falsa, no meio de uma gente vítima de problemas gástricos e intestinais. A secretária ainda teve o desplante de vir pedir a ele que desse a vez a uma senhora de idade. Disse sim, sempre dizia sim, sempre fazia favores. Chega! Iria embora dali já! Imaginou-se batendo a porta e soltando um palavrão cabeludo, mas apenas disse à atendente que precisava sair e que marcaria outra hora. Tudo muito educado. Sempre muito educado...

Voltou a enrolar as radiografias em canudo e as guardou na mochila, agora sem preocupação de que amassassem. Definitivamente não queria mais pisar os pés naquele consultório nem ver a cara daquele médico. Saiu caminhando pelas ruas do centro da cidade. A mãe iria questionar seu gesto desarvorado de sair sem ter sido atendido. Pensou numa desculpa. Muita gente, urgências chegando, teve que dar a vez a uma senhora – e isso nem era mentira. A mãe. Limpe os pés, lave as mãos, estique o lençol, tire os cotovelos da mesa, não mastigue de boca aberta, não molhe a borracha de saliva, não risque o livro de caneta. A mãe. É para o seu bem, não reclame, coma tudo, engula o choro, não deixe o gato subir na cama. Nessa tarde ele não voltaria ao trabalho. O pai sabia dos exames. Entenderia a demora. O pai. Outra casa, outra mulher, outros filhos, irmãos pela metade, sem nenhum afeto. O pai. Um homem trabalhador, a quem obedecia, mas não amava. Seu pai, seu patrão, carreira promissora como gerente exemplar na rica empresa de limpeza industrial.

Andando a esmo, sentiu-se confuso, talvez percebendo a proximidade da culpa pelo que fizera. Detestava a sensação de culpa, mas vivia dentro dela. Culpa de ter cursado administração de empresas e não veterinária; de ter silenciado, por medo de um não, ao amor que sentira na adolescência; de ser como era, de ser quem era, com esse nome estranho: Astreu. Alvo de gozações desde criança. Astreu, tua língua o gato comeu. Astreu, pega no meu. Mas era o mesmo nome do avô, a quem ele adorava. Por isso nunca reclamara. O avô. Vivia sozinho num sítio, de onde nunca quisera sair. Vô Astreu. Esse sim, era feliz, longe dessa imundície de cidade corrupta. Um ganido lancinante o tirou das lembranças do avô e ele viu o cão de rua sair se arrastando, curvado ao meio, uivando de dor depois do brutal chute nas costelas dado pelo homem da fruteira. Nunca tinha reagido assim, mas num impulso gritou ao outro que fosse chutar a própria mãe. Babaca! Covarde! Monstro! Covarde!

O homem da fruteira pegou um porrete e veio em sua direção. Era imenso. Vermelho e imenso. E o porrete na mão, olhos injetados de ódio, praguejando de volta sua fúria contra o rapaz franzino que ousara desafiá-lo. Um rapaz que não arredara pé do lugar, ali, do outro lado da rua, sustentando na boca raivosa o vil xingamento de covarde, covarde, e a mãe no meio. Ah, esse moleque besta vai receber sua lição, vai sim. Vai saber quem é babaca, quem é covarde. Vai latir mais do que o cachorro sarnento que ele quis defender. É melhor correr, desgraçado! Vamos, corre. Corre, senão vou ter que te arrebentar. Vou te cobrir de pau, sacana. Não vai correr? Quer me diminuir? Então quer me encarar? Toma, toma, toma, toma, seu cachorro. Não vai gritar? Toma outra, toma mais...

Tudo muito rápido. Um zunido na cabeça, se afinando, afinando, até sumir. O silêncio e o branco. Depois o verde. Mato? Água? Vô Astreu o ensinando a nadar. O riacho morno correndo, passando através de si. Ele mesmo uma fonte quente. Tudo ficando mais longe. Tudo indo e vindo. Noite e dia, de repente. Fiapos de vozes. No meio do branco, o avô sentado na porta da casa de madeira. Ele no colo do avô. Ecos da passarada ao anoitecer. Ninhos nas árvores, bichos andando soltos, felizes, entre arbustos e flores. A vida inteira feliz. Ele voando. Um mundo perfeito.

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