Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







terça-feira, 3 de agosto de 2010

Pé sem cabeça


Nivaldo Pereira
Um videoclipe sem sentido, um caleidoscópio de imagens ao léu. Sem cabeça a regular, sem pensamento ordenador. Apenas imagens, conexões que ocorram, lembranças que surjam. Um sonho acordado, enfim. Que tudo comece e termine nos pés. Que não suba, não evolua, que fique por lá, ao rés do chão. Que os pés apenas sigam, apenas cumpram um desígnio mágico que os ordene a caminhar, caminhar, por terras e ares, talvez sem nunca chegar.
Pés sustentam. Equilibram-se em saltos agudos, comprimem-se em sapatos fechados. A bota apertada do velho Machado, para ao fim do dia o prazer dos pés descalços. Pés carregam o homem. Mas quanta ingratidão e abandono! Raramente um afago, uma massagem, uma água morna e perfumada. No máximo a higiene natural, como se eles, fortes e calados que são, de nada precisassem, nunca. Muita gente nessa vida é pé: leva a carga em silêncio, como se nem existisse carga, como se nem existisse o carregador.
Pés sofrem. A parte corpórea do signo de Peixes. Sabem do auto-sacrifício, mas que ninguém peça explicações, pois explicação não há. As coisas são o que devem ser. E só. Pés são humildes. Cristo lavando os pés poeirentos dos apóstolos. A mulher pecadora beijando os pés de Cristo e ungindo-os com perfumes, em busca de perdão. Cristo caminhando sobre as águas. Pés salvam o mundo. Os pés de Cristo unidos em sangue por um cravo afiado na cruz. Pés que peregrinam na fé. Caravaggio, Juazeiro do Norte, Santiago da Compostela. Pés estropiados. Pés em êxtase da chegada. Pés de Cristo.
Pés dançam. Baques tribais sobre a terra. Tum-tum, tum-tum. Dedos, artelhos, unhas, garras, garrões. Pés atacam. Coice humano, pés na cara, pés de guerra. Ritos de força: pés sobre brasas, pés incólumes. Pés correm, pés chegam, outros pés nunca alcançam. Pés balançam, pés descansam. Pés no riacho fresco, pés em paz, pés felizes. E de novo pés na estrada. Pés na lama, pés no limo. Pés quebrados, vida parada: a espera nos pés.
Pés fazem arte. Bola nos pés, drible de craque, bola na rede. Pés de moleques nas várzeas. Pés de negros, pés de brancos, chuteiras iguais, sonho em comum: pés fazendo a alegria dos corações. Pés no ar, delírios de valsa. Pés no tango, no samba, no frevo. Pés no balé, nas pontas, nos pontos. A graça nos pés, pés que voam. Pés com asas, Hermes mensageiro, divino Mercúrio a trilhar céus, terras e infernos, unindo mundos, criando pontes. Pés que falam.
Pés fogem. Pés são velozes. Pés miúdos de meninos sem casa, correndo na multidão. Pés de botinas negras, em cerrada perseguição. Pés de pedestres parados, espiando com atenção. Pés que não arredam. Pés que tropeçam, topadas nas pedras. Pés virados, pés inchados. Pés consertados pela bruxa velha. Pés de mandinga, rastro de Saci, trilha enviesada do Curupira. Pés do asfalto, pés da mata. Pés do povo, pés de Deus.
Pés são limites. Corda bamba esticada: pés na vida, pés na morte. Pés que escorregam, pés que levantam, pés que desistem. Pés cansados no parapeito, pés no pulo, pés no vazio, o fim dos pés. Pés que nascem, pés na boca do bebê, o gosto dos pés. Pés de esperança, a caminhada do corpo, a jornada da alma. Pés que vacilam, pés que se atiram. Pés que se ferem, o espinho nos pés, o caco de vidro, as velhas cicatrizes. Pés que amam: o enrosco dos pés, o carinho, o fetiche. Pés que afastam, pés que aproximam. Pés quentes, pés frios. Pés enfermos, pés sadios. Os pés calejados e a única certeza: caminhar de qualquer jeito, caminhar sempre, caminhar com alegria, até a vida dar pé, até findar a estrada e outra jornada começar.

3 comentários:

  1. pés
    são raízes,
    são pássaros
    como as perdizes.
    Podem nos levar
    pra onde acharmos
    que seremos felizes.

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  2. [...]"Pés quentes, pés frios. Pés enfermos, pés sadios. Os pés calejados e a única certeza: caminhar de qualquer jeito, caminhar sempre, caminhar com alegria, até a vida dar pé, até findar a estrada e outra jornada começar."

    Realmente muito bom =]

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  3. Adorei, fui obrigada a direcionar este link no meu blog... Parabéns pela matéria!

    Abraço
    Cínthia

    http://espacoenergiaeequilibrio.blogspot.com/2010/11/momento-de-reflexao.html

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