Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
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redor, sobre tudo. É isso aqui.







sábado, 7 de agosto de 2010

Sapataria do amor


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 11/06/2005

Igual a muitas outras do comércio, a vitrine da sapataria estava repleta de corações e anjinhos singelos, claramente sugerindo a cada enamorado que ali fosse comprar um mimo útil para sua cara-metade. A princípio achei forçada essa sugestão de presente. Sapatos? Mas, pensando melhor, descobri que o sapato pode ser, sim, uma curiosa metáfora do amor. Não é raro a gente dizer de alguém: “é o meu número!” Ou então evocamos o velho ditado que destina um chinelo velho a todo pé torto. Confiantes nisso, a procura do par perfeito, para além das sapatarias, vai pontuando nossa educação sentimental. E esperamos com ardor o encontro com esse ser feito na nossa medida e com quem caminharemos na vida.
Amor e sapato têm muito a ver. Há amores leves como um chinelo de dedo, naturalmente livres e desapegados, e há outros austeros como um coturno militar, cheios de amarras e regras de apresentação. Há amores exuberantes mas instáveis, carentes de equilíbrio e cuidado como um salto-agulha, e há outros aconchegantes e prosaicos feito uma pantufa usada. Há amores esportivos e joviais como um tênis, e amores que são puro verniz, sempre à mercê de arranhões definitivos, legítimas cicatrizes.
Não passamos sem amor e sem sapatos. Nas muitas vitrines da vida, eis que acontece de a gente deparar com o nosso par idealizado. Lá está ele, lindo, original, resistente, para durar a vida toda. Partimos para a prova, sentimos um certo desconforto, mas ignoramos. Não convém deixar escapar tão vistoso modelo. Seguimos andando com ele e... oh, dor! O sapato dos sonhos nos aperta o calcanhar! Tentamos paliativos, meias de algodão, curativos, mas o calo estará sempre ali, alardeando que não cabemos nessa relação.
É comum o sapato ceder e se moldar ao nosso pé, acabando o suplício, do mesmo modo como é comum a gente tolerar as diferenças gritantes dentro de um novo relacionamento, deixando-o ser como é, moldando-nos a ele. Mas acontece também de o calo nunca sarar e, pelo contrário, tornar-se crônico, a ponto de a pessoa preferir abandonar os calçados e andar descalça pelo resto da vida. Aliás, como tem gente que morre de medo de novos calos, de novas dores. Podemos até cunhar um ditado assim: antes descalço do que mal calçado.
Esses de pés desnudos sempre poderão recorrer ao abrigo de um antigo sapato, gasto, mas sempre eficiente, ainda mais nas noites invernais. É como a letra da canção Sapato Velho, sucesso de outros tempos do grupo Roupa Nova: “É, talvez eu seja simplesmente como um sapato velho / Mas ainda sirvo se você quiser / Basta você me calçar / Que eu aqueço o frio dos seus pés”.
Diante das diferenças entre nossos pés e os sapatos que encontramos, talvez o sapateiro seja uma figura providencial. Mas conheço pelo menos duas histórias de amor com final infeliz para os sapateiros. Maria Déia era casada com um, lá no sertão nordestino dos anos 1920, até o dia em que ela viu chegar Virgulino Lampião e seu bando de cangaceiros. A mulata formosa caiu de amores e não contou conversa: deixou os filhos com a avó, nem disse adeus ao sapateiro e seguiu atrás da pisada de Lampião caatinga adentro. Deixou de ser Maria Déia para tornar-se Maria Bonita. Ela e o rei do cangaço viveram juntos por quase dez anos, entre balas e espinhos, e juntos morreram, calçando as alpercatas do amor bandido.
Já a jovem catarinense Ana Maria era uma pobre mulher de sapateiro em Laguna, na década de 1830, quando teve a ventura de ser fisgada pelo olhar do guerreiro italiano Giuseppe Garibaldi. O sapateiro foi passado para trás, porque os pés de Ana acompanharam as pegadas das botinas de Garibaldi pelos pampas em revolução. Anita Garibaldi morreu na Itália em 1849. Tinha apenas 28 anos e uma heróica trajetória de lutas e batalhas ao lado do seu amor.
Os dois sapateiros abandonados talvez não tenham sabido consertar os próprios sapatos. Ficaram de pés no chão, coitados. Porque com o amor e com os sapatos sempre há o risco de aparecer um par mais perfeito. Agora, deixem-me procurar os meus chinelos...

Um comentário:

  1. Interessante, histórico, suave e inteligente sua crônica comparando o amor aos sapatos. O texto deixa a gente viajar entre os tempos, deixa-nos pensar em outras possibilidades de sapatos e de amores.
    Mas a leveza de um par de chinelo faz com que os nossos pés tenha um carinho especial.
    Beijos Nivaldo!

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