Terceira Casa?
No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.
sábado, 25 de setembro de 2010
Um libriano
Contos astrais: A balança
Nivaldo Pereira
Publicado no Pioneiro, 14/10/2006
Da porta da sala, ela virou a cabeça de um lado para outro, conferindo a arrumação do ambiente por diferentes ângulos. Flores, ok; almofadas, idem; tudo certo também na ondulação da manta do sofá para dar um premeditado ar de despojamento. As velas, prontas para serem acesas. O que estaria faltando? O incenso! Tinha que ter um incensinho queimando bem na hora em que ele tocasse a campainha. Já tinham falado nisso, e ele adorava aromas orientais. Lavanda ou flor de laranjeira? Lavanda é mais suave; flor de laranjeira poderia trazer um astral mais exótico, algo cigano... Não, nada muito forte: senão ele poderia pensar nela como uma atirada, como se quisesse seduzi-lo na primeira visita. Vá de lavanda! A luz cada vez mais tardia do poente varava a cortina de tule branco. Ela amava o crepúsculo. Pôs a tocar outra vez o disco de Adriana Calcanhotto. Pena que ainda faltasse meia hora para ele chegar. Quem sabe depois dessa noite nunca mais ela sofresse a dor de não poder compartilhar um pôr-do-sol...
Uma réstia de sol cruzou estranhamente, àquela hora, o quarto dele. Olhou pela janela, procurando uma explicação. Lá estava. Alguém abrira uma vidraça em ângulo no prédio em frente, projetando daquele lado a luz oposta do poente. Ele ainda estava de toalha atada à cintura, depois do banho demorado, olhando em dúvida as duas mudas de roupa estendidas sobre a cama. Jeans ou aquela calça mais sóbria? Manga comprida ou uma camiseta com os óculos estilizados de John Lennon? Pensou em ligar para algum amigo, pedindo uma dica, mas achou isso uma frescura tamanha. Vestiu e desvestiu cada peça, até optar por outras: uma calça velha, de brim verde, e uma camiseta com a estampa do rosto de uma Brigitte Bardot anos 60 fazendo beicinho. E se ela pensasse nisso como um convite a um beijo? Seria bom, muito bom... Rindo feliz com essa possibilidade, borrifou discretamente o perfume no pescoço e examinou no espelho os dentes. Estava pronto.
Ela acendeu as velas tão logo o sol desceu no horizonte. Ajeitou mais uma vez as flores no jarro. Seria bom pôr na mesinha de centro uns livros diferentes. Quais? Poesia, sempre! E poesia tem que ser do Vinicius. Num átimo trouxe da estante uma antologia de sonetos em capa rosada. De tudo a esse amor ela seria atenta, por isso o esmero, por isso o cuidado. Ele haveria de levar dali a imagem de uma mulher refinada, mas simples. Juntou ao livro uma revista de decoração e um álbum com fotografias de casas do interior brasileiro. Pensando melhor, escondeu na gaveta a revista, porque ele poderia supor que tudo ali tinha sido obra de ensaios copiados, e não a criação legítima de uma alma sensível. Acendeu uma luminária no chão. Sim, o ambiente exalava um conforto convidativo, bem como ela queria. Na cozinha, já tinha conferido tudo muitas vezes: taças, o vinho branco na geladeira, os petiscos. De prontidão, os ingredientes para o jantar, mais tarde, ao sabor de conversas deliciosas ao pé do fogão. Dez minutos para a hora marcada!
Já na rua, ele olhou o relógio no painel do carro. Dava tempo de comprar alguma coisa para levar, mesmo que ela tivesse deixado claro que ele não se importasse com isso. Flores? Romântico, mas muito clichê... Ah! Ela haveria de gostar do queijo caseiro da dona Edite. Estava perto. Estacionou e entrou no armazém antigo já pronto para fechar. A dona o reconheceu e, como se já soubesse o que ele queria, e sabia mesmo, foi logo divulgando o sabor do queijo que chegara naquele mesmo dia. Meio quilo? Ela pôs a bola num dos pratos da velha balança, e o peso no outro. O queijo estava bem mais pesado, mas dona Edite o retirou assim mesmo. Ele reclamou. Não era justo. Ela estaria no prejuízo. Ele queria pagar o valor certo. Mas a gorducha senhora o olhou com carinho e autoridade e sentenciou: “Meu jovem, você precisa aprender a receber. Você é um bom cliente. Deixe eu ser boa para você também. É um direito meu.” Ele sorriu, desconcertado. Pagou e saiu, agradecido.
Ela olhava o relógio a cada segundo. Começou a se preocupar. E se ele achasse todo o cenário da casa muito artificial, como que montado para agradá-lo? E se não ficasse à vontade? E se nem viesse? O telefone tocou. Ela gelou. Certamente era ele, dando uma desculpa qualquer. Sim, era ele. Ela gelou ainda mais. Mas ele estava lá embaixo e apenas esquecera o número do apartamento. Ela quase chorou de alegria. Correu a acender o incenso, não sem antes trocá-lo de impulso por um de rosas vermelhas. Olhou-se no espelho, sacudiu os cabelos, ajeitou a alça do sutiã sob a bata indiana branca e bordada. O coração aos pulos. A campainha. A porta aberta. Dois beijinhos nas faces. Olhares.
Que cheiro ótimo, ele disse. Não vivo sem incenso, ela disse. Ele olhando as coisas da sala, ela explicando tudo. Aqui e ali um roçar de cotovelos, de dedos. Frêmitos nos corações Ele encantado com a delicadeza de uma pequena balança prateada na estante. E ela: “Presente da minha formatura em Direito”. Ele olhando a vista da janela, à luz do crepúsculo ainda resistente. Ela falou da beleza especial daquele poente. Algo inebriado, ele contou a ela a surpresa de ter visto o mesmo pôr-do-sol, mas indiretamente, pelo reflexo na vidraça de um vizinho. Ela riu, e disse: “O segundo sol!”. E os dois acharam que algo forte estava acontecendo. E os dois se sentiram um. Arrebatados, nem perceberam a dança da chama de uma vela refletida na balança da estante. Na mão dele, esquecida, a bola do queijo, pronta a ser repartida.
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
Primavera nos dentes
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 24/09/2010
Outra crônica de primavera, Nivaldo? O amigo não está ficando repetitivo? Ora, outra crônica de primavera, sim, porque primavera só acontece uma vez por ano e porque nunca é demais sair do olhar miúdo do relógio de pulso para observar e sentir um outro relógio, o do cosmo. É a Vida, assim, em V maiúsculo, que grita lá fora. Por isso, deixe o cronista se repetir e alertar que um novo ciclo se instaura na natureza. Besta é quem não vê nem aproveita isso. Que esteja antenado o leitor: hoje, sexta-feira, é o segundo dia da primavera de 2010.
Mas há tantas coisas sobre as quais seria bom chamar a atenção do leitor... A sociedade, a cidade, as eleições, o futuro, tudo isso não tem pano de sobra para tecer mangas mais úteis na crônica? Ah, mas essa pretensão de utilidade é uma bobagem. Leitor não lê crônicas em busca de utilidade. Aqui ele quer uma pausa, um descanso, uma viagem, um delírio, porque ninguém agüenta o tranco da realidade sem um refresco. Então, vamos ao refresco, cambada: nessa primavera, prometa-se uma festa sem motivo, somente para celebrar a Vida, essa com V maiúsculo.
Ok, mas por ter um espaço de comunicação ao público, o cronista não deveria se engajar em atitudes mais urgentes à causa humana? E a responsabilidade social? Pois que outro vista essa carapuça de responsabilidade social! Não é o ato de escrever e comunicar que me torna apto a dar conselhos, denunciar erros e omissões e brigar pelo leitor. Além do mais, tenho colegas ótimos nessa labuta. Deixem-me no direito de propor um coro cujas palavras de ordem repitam o estribilho do Tim Maia: é primaveeeeraaa, te amoo...
Essa atitude alienada não vai te render muitos leitores. Ser mais pontual e menos viajandão não te daria mais ibope? Ah, não, foi essa loucura de ibope que arrasou com a televisão. Tudo agora é número, índice, ganho, grana. E se é para ter números, pergunto de cá: quantos passarinhos você viu hoje? Quantas cores novas há nas árvores de sua rua? Quantas vezes sentiu o ar fresco da estação alargando os pulmões? Hoje é primavera. Sorria. Celebre. Hoje. Agora. E fim de papo.
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
No altar da MPB
Rita Ribeiro saúda orixás e entidades no show Tecnomacumba
Nivaldo Pereira
Crônica publicada em 29/04/2006
Talvez a música seja a forma de arte mais presente na vida humana, porque podemos criar sonoridades melódicas em qualquer situação, seja um simples batucar de dedos ou um assovio na rua. Música é transporte para outras dimensões. Pode espantar males ou atrair melancolia, pode conduzir ao céu da nossa doce saudade ou ao inferno das nossas piores lembranças. Daí que a música vira passaporte oficial para o transcendente. Deve ser raro um ritual religioso sem música, venha ela de um címbalo tibetano, de um tambor africano ou de um cântico na missa. Certamente os deuses gostam de sons e ritmos. Por isso, é comum a música popular sair do profano para tocar a esfera do sagrado, louvando a Deus ou falando de aspectos do lado transcendente da vida. Em nossa rica MPB, não foram poucas as vezes em que o palco virou extensão do altar.
Como hierarquias e tradições fazem parte do aspecto religioso humano, vou começar das alturas olimpianas, falando do Rei Roberto Carlos. Em 1970, ele lançou-se como menestrel absoluto do divino com a evocativa Jesus Cristo, bebendo na fonte melódica do negro “soul” das igrejas protestantes norte-americanas. Aquele coro, aquele refrão e aquelas imagens de nuvens brancas e multidões caíram sobre o Brasil como um maná do céu. A canção passou rapidinho das paradas de sucesso para o repertório das missas católicas. E o Rei nunca mais parou de dizer “obrigado, Senhor”, de falar do tamanho da sua fé e de pedir a mão a Nossa Senhora. No maior país católico do mundo, não cabe mesmo a um rei desprezar as sagradas tradições cristãs.
Foi por sua devoção inabalável que Roberto Carlos descartou a canção Se Eu Quiser Falar com Deus, que Gilberto Gil tinha composto especialmente para ele. Essa história de ter que “virar um cão”, “comer o pão que o diabo amassou” e “caminhar decidido numa estrada que ao findar vai dar em nada”, definitivamente, não cabem na crença monolítica do Rei. São conceitos de influência oriental, coisas de um relativista Gilberto Gil, que já faz canções falando de procissões alienantes, orixás, I-Ching e retiros espirituais nos quais teria que decifrar ambos os lados de sua equação metafísica. Gil talvez seja dono da mais sofisticada visão religiosa da MPB. Com a alma cheirando a talco, junta num mesmo palco o Deus Sol e a Deusa Música. E ainda acredita que arte e ciência são ambas filhas de um “Deus fugaz que faz num momento e no mesmo momento desfaz”. A igreja do Rei fica bem longe desse terreiro quântico...
Mas, em se tratando da expressão musical de um país miscigenado, onde o catolicismo oficial convive com outras crenças de origem diversa, a MPB também abre seu altar para um ritual ecumênico. No famoso disco do movimento tropicalista, de 1968, Bat Macumba emendava com o Hino do Senhor do Bonfim. Vinicius de Moraes e Baden Powell já tinham lançado uma série de sambas-afros, tirando os orixás africanos dos terreiros clandestinos e trazendo-os para as ruas e palcos. E saravá virou bordão musical. Ampliaram o que Dorival Caymmi tinha feito com o sincretismo baiano, ao render elegias tanto para Iemanjá quanto para o Senhor dos Navegantes. Pois os tropicalistas comeram tudo isso num ritual antropofágico e abriram caminho até para um Raul Seixas cantar depois seu Rock do Diabo.
Enquanto isso, na onda do musical hippie internacional Jesus Cristo Superstar, o cabeludo Antônio Marcos vivia um roqueiro em crise existencial na balada Oração de um Jovem Triste. Numa igreja, diante de uma imagem de Cristo, ele tem uma iluminação mística sem alucinógenos: “Vestido em ouro te imaginei / E tão humilde eu te encontrei / Cabelos longos iguais aos meus / Tu és o Cristo, filho de Deus”. O povo adorou. E o cantor voltou com o hino O Homem de Nazareth, em 1973. E as igrejas adotaram a canção também.
O altar da MPB é mesmo ecumênico. Cabem nele a modinha popular Cálix Bento, resgatada por Milton Nascimento, e a roda da Pomba-Gira, na Moça Bonita de Ângela Maria; cabem o canto caipira da Romaria de Renato Teixeira a Nossa Senhora Aparecida e o ponto da Mamãe Oxum com Zeca Baleiro; cabem a Ave Maria do Morro e a Ave Maria da Rua. Cabem até novas indagações sobre a figura de Deus, como na Invocação de Chico César: “Serás Deus ou Deusa? Que sexo terás?” E termino essa louvação à liberdade absoluta de crença e de canto vestindo as roupas e as armas do guerreiro santo e rezando o refrão suingado: “Salve, Jorge! Salve, Jorge! Salve, Jorge!”
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
Quatro elementos e um funeral
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 17/09/2010
O sol batia na estante de livros. Gostou daquilo: um pouco de calor evita mofos e manchas nas páginas. Também era como se a luz solar estivesse a iluminar seu caudal de informações, qual um fogo a lhe clarear os recônditos do cérebro. Cada título nas lombadas, uma história, um tratado, uma viagem. E seu mundo quase ali, na estante, organizado em visões de outros. Mas a luz baixou, sol ocultado por nuvens, mudança no ar. Outras nuvens, escuras, chegavam, ao sabor de um vento forte.
Somente uma fresta na janela, e por ela o vento foi tecendo a sonoplastia de sua força. Viração de tempestade. Vento odeia obstáculos, enfrenta-os, silva, uiva, urra. Vento quer ser novo, sempre. A vidraça a tremer, um certo medo se instalou, mas veio a calma da lembrança do tudo bem após outros vendavais. Ah, não fosse pelo estrago possível, que bom seria escancarar tudo a esse vento! Deixar-se levar, voar, voar, até o pouso final sobre o inédito que o vento promete. Mas agora era a chuva, de grossas gotas, que já batia na janela.
Não demorou para a vidraça virar cortina aquosa, turvando a visão de fora – e a sala, aquário difuso, peixe encerrado dentro. Lavavam-se céus e mundo no grosso fluxo. No íntimo, uma suave acolhida de si, vestígio de um banho refrescante, feito sensação de sonho bom, de memória feliz, de ternura antiga. Inquietações se dissolviam no fluir universal. Não haveria rancor, medo ou ferida de alma que não pudessem receber o balsâmico jato daquela chuva. Bastava abrir o peito, não resistir, esperar um pouco, entregar-se. Tudo passa, e até a chuva passou.
O sol voltou – ar fresco, janela outra vez aberta. Subiu-lhe o cheiro de terra molhada, húmus da vida, mãe eterna à espera de novas sementes. Quis pisar no chão de pés nus. Pulou a janela. E cavou com os dedos um buraco, no quintal. Ali, depositou sonhos frustrados, desejos velhos, vazios de ânsia. Cobriu tudo de terra, ficou um montinho, qual sepultura. Antes de entrar, olhou a cova. Quem sabe nascesse ali a esperança? Sim: já era tempo de morte virar vida. Faltava bem pouco para chegar a primavera.
Amores e clichês
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 22/06/2007
Quis ter um amor feito os dos romances ingleses. Encontraria ela numa alameda do Hyde Park. Olhares se cruzariam sob os chapéus, o olhar dela lembrando uma raposa da charneca, desconfiado; o dele, uma névoa úmida, olhos de fog. Ele a seguiria, e ela moraria numa casa vitoriana, de amplo jardim, com olmos, choupos e tílias formando uma sebe bem cortada, e um pequeno lago com nenúfares. Apesar do bucolismo do entorno, a casa teria um aspecto sombrio, de janelas cerradas. Mulher misteriosa. Guardaria segredos mortais? Cometeria um crime sem deixar vestígios? Teria no lenhador um amante? Riscos demais. Melhor mudar de história.
Daí quis viver um affair como nos filmes franceses. Ele e ela seriam colegas da Sorbonne. Sairiam flanando, ela cheia de charme, com a boina caindo-lhe de lado. Reclamariam no café habitual: a mesa “deles” estaria ocupada. Aí sentariam irritados perto da vidraça e falariam de tudo. Louvariam as glórias nacionais e lamentariam a falta de gênio das novas gerações. Mundo tedioso, carência de revoluções. Súbito, ela revelaria o desejo de voltar para o ex-namorado, mas que poderiam continuar juntos, amantes da tarde, para que um amor assim, tão raro em frescor, jamais sucumbisse à monotonia dos dias. Ele reagiria com raiva. Discutiriam alto e muito. Huumm... Muita falação, amor ruidoso. A história deve ser outra.
Bom mesmo seria um amor de canção portuguesa. Ele, marinheiro; ela, moçoila das margens do Tejo. O beijo quente da despedida duraria dias, meses, na lembrança da boca, quando o navio singrasse pelos altos mares. Toda noite, da amurada do navio, perto da popa, ele olharia para os lados de Portugal. No porto, vendo as ondas baterem nas pedras do cais, ela lançaria ao grande mar o sal de suas lágrimas. Mas algum dia viria algum infante das terras de Espanha e a consolaria no peito. E ele sequer a encontraria na volta do mar. Rapariga sem devoção! Essa história não serve...
Então, aqui e agora, em casa, ele somente telefonaria para ela: “Cansei de amor inventado. Vem, eu esqueço tudo, vamos começar de novo, como numa sexta de Carnaval.”
sábado, 11 de setembro de 2010
Perséfone vem aí
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 28/08/2009
Acordo com o chilreio animado de um pardal no telhado vizinho, adivinhando primavera. Isso já aconteceu antes, já falei disso. E eis tudo de novo, a repetição de ciclos que dá ordem à vida e nos protege do caos. Se ouvissem esse meu pardalzinho matinal, os antigos gregos diriam: Perséfone está voltando para casa e Deméter mostra sua alegria na natureza. O mito que envolve essas personagens, embora doloroso, é carregado de poesia. Vale a pena recontá-lo, agora que o sol transita em Virgem e foca nossa atenção nas etapas naturais.
Pois bem. Deméter era a deusa da terra cultivada. Regia as plantações e as colheitas, o trigo e a arte do pão. Tinha uma filha única, a mocinha Core, a quem adorava. Mas essa adolescente já havia despertado o desejo do sombrio Hades, ou Plutão, deus do mundo subterrâneo, senhor de maneiras nada gentis. Certo dia, enquanto brincava na campina, Core foi atraída por uma flor, um narciso. Mal tocou na flor, a terra se abriu, dela saindo Hades em sua carruagem negra, raptando Core para o além. Um grito da filha: foi só o que Deméter ouviu. No reino de Hades, este logo garantiu sua união com a jovem, estuprando-a. E Core virou Perséfone, rainha do mundo dos mortos.
Acontece que Deméter ficou inconsolável com o sumiço da filha. Abandonou o Olimpo e vagou pelo mundo, maltrapilha, procurando, procurando, ninguém sabe, ninguém viu. Com tanta dor e tristeza, a terra foi ficando arrasada, nada mais crescia, a fome grassava. Deus dos deuses, Zeus resolveu intervir. Foi procurar Hades, seu irmão, que não quis conversa. Negocia daqui e dali, a vida em perigo com a depressão da mãe-terra, Hades consentiu num acordo. Uma parte do ano, Perséfone ficaria com a mãe, e outra parte, com ele, o agora marido.
Assim, a cada outono, Deméter chora a descida de Perséfone para o mundo dos mortos; a natureza se torna melancólica, até o frio do inverno. Mas, na primavera, é tempo da alegria do reencontro de mãe e filha, e tudo parece sorrir de contentamento. O pardal no telhado vizinho também parece saber por instinto desse tempo e faz festa para Perséfone.
Tanto felice
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
Guerreira Dadá
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 10/09/2020
Dias atrás, conheci o cineasta cearense Rosemberg Cariry, homenageado do nono Festival Santa Maria Vídeo e Cinema. Sou fã do Cariry há muito, pelo seu resgate profundo e sensível de temas e figuras da cultura nordestina, como o casal cangaceiro Corisco e Dadá e o poeta Patativa do Assaré. O cineasta contou do seu antigo fascínio pela figura de Dadá, em episódios que me deixaram muito emocionado, a pensar na força trágica de certas vidas.
Dadá era o apelido de Sérgia Ribeiro da Silva, menina que, aos 12 anos, no sertão da Bahia, fora raptada e estuprada por Cristino Gomes da Silva Cleto, vulgo Corisco, ou Diabo Louro, destacado cangaceiro do bando de Lampião. Dadá não perdoou a violência de Corisco. Mesmo no bando, rejeitou o quanto pôde o amante de ocasião, e este investiu na conquista, até o asco virar respeito, afeto, virar amor. Aprendeu com Corisco a ler, contar e atirar. Era hábil no manejo da pistola. Entre espinhos e perseguições, os sete filhos do casal foram ficando pelos caminhos e caatingas, na casa dos outros.
Quando Lampião e Maria Bonita foram mortos, em 1938, Corisco e Dadá já não estavam no bando. Mas a polícia, munida de metralhadoras, finalmente encurralou os dois, em 1940. Corisco foi morto. Dadá reagiu a tiros – e Cariry chamou a atenção para o fato de o cangaço nordestino chegar ao fim na luta armada de uma mulher! Ferida na perna, que terminou amputada, Dadá foi levada presa a Salvador. Anistiada depois, casou-se de novo, e partiu para outra luta: juntar os restos do corpo de Corisco, sepultado no sertão, à cabeça cortada do cangaceiro, que ficara exposta num museu de Salvador, ao lado das cabeças de outros membros do bando – macabros troféus da “civilização”. Somente em 1969 ela conseguiu seu intento, e a ossada completa do Diabo Louro ganhou sepultura.
Em 1996, Rosemberg Cariry lançou o filme Corisco e Dadá, com Chico Diaz e Dira Paes. Era a história da falante e simpática velhinha que ele conhecera em Salvador e que morrera dois anos antes, aos 79 anos. Era a história de uma mulher nordestina – uma brasileira guerreira chamada Dadá.
domingo, 5 de setembro de 2010
Vibração do morro
Crônica do banheiro
Nivaldo Pereira
Com você, leitor, mais um episódio das minhas ocasionais e delirantes viagens por dentro de casa e por seus utensílios. Desta vez, pretendo olhar as banalidades do banheiro, certamente o espaço doméstico mais visitado por todos os moradores da casa. Quebrando as convenções desse recinto de solidão e intimidade, convido-o a entrar nele comigo e a fechar a porta. Vou mostrar o quanto o banheiro, tão necessário, também pode ser palco de muitas aflições. Venha sem medo.
Primeiro, a pia. Nela encontra-se uma peça de metal ou plástico, pequena mas com o poder de derrubar a máxima do sábio grego Heráclito de que tudo flui: a torneira. Foi inventada para interromper e controlar o fluxo inexorável da água. Pena que nem sempre ela cumpra a contento sua função. Há uma legião de torneiras assassinas, ávidas por ensopar as vítimas incautas. Nunca é a nossa, porque dessa a gente conhece bem o jeito de abrir, a força necessária para o jorro de água sair. É quando a gente entra num banheiro desconhecido que elas atacam com seus jatos potentes em nossas partes baixas. Vexame na certa.
Às vezes elas cismam de pingar, pingar, pingar. Certa feita, num hotel de Montevidéu, quase enlouqueci de insônia com o ploc-ploc da torneira do banheiro _ uma máquina de tortura chinesa. De outras vezes, elas passam direto do ponto de vedação e tornam a se abrir, relaxadas. E se tem uma coisa que adoramos adiar é a troca do famigerado selinho redondo de vedação. Vamos dando um jeitinho, deixando para amanhã, achando demais chamar um encanador para mudar uma pecinha tão besta. Enquanto isso, nossas visitas padecem na pia e muita água vai pelo ralo. Insanidades domésticas...
Para evitar o desperdício de água em banheiros com grande visitação pública, inventaram as torneiras inteligentes, que, a um toque ou a uma passada de mão embaixo, lançam jatos de vazão calculada. As torneiras podem ser inteligentes, mas me sinto um idiota ativando sensores que nem sempre funcionam, como se eu fosse um mágico de poderes fajutos, incapaz de sensibilizar um mecanismo desses. Odeio particularmente aquelas que dão uma choradinha de nada e param. Enquanto uma mão se lava, a outra fica ativando a torneira. Dá uma saudade da velha bacia...
Da pia, vamos ao vaso sanitário, o decantado trono de todos. Tão familiar, tão necessário, tão versátil, servindo até como cadeira de leitura, mas sempre um potencial instrumento de terror se ele não estiver em seu banheiro. Vaso alheio é um poço de surpresas. Poucas situações nessa vida podem ser mais constrangedoras do que quando a gente vai a um banheiro desconhecido e percebe que a descarga não funciona. Válvula estragada? Ou faltou água? Senhor, valei-nos! Um momento atrás éramos reis no trono, e agora, trocamos nosso reino por um balde cheio de água! Vejam como é a vida...
Eu me divirto nos banheiros dos botecos com aquela descarga ativada por uma cordinha de náilon. São sempre pretas, imundas, e a gente fica tentando encontrar um trecho mais limpinho para pegar na corda. Como não há, terminamos puxando bem lá em cima, no plástico. Cordinhas pretas à parte, essas descargas ainda são melhores do que as de parede, embutidas, que a gente aperta a válvula e nada acontece. E quando entramos no banheiro do bar e a calamidade já está lá, no vaso, indicando que a descarga está quebrada? Ao sair, como explicar para o próximo da fila que você não foi o autor da obra? Vexames, vexames.
Vamos tampar o vaso e abrir a ducha. Sim, essas também aprontam nos banheiros. Dão choque na torneira, esfriam de repente e lançam pingos gelados em nossa cabeça na hora da toalha. O ralo entope, o sabonete cai, furinhos do chuveiro ficam enviesados, molhando para além do box ou da cortina. A lista de infortúnios no banheiro é mesmo enorme. Tenho certeza de que você, amigo leitor, poderia enumerar muitos itens de infelicidade de dentro desse nosso recanto de purificação e intimidade. Agora vamos abrir a porta, senão “o povo malda.” Duas ou mais pessoas saindo juntas de um banheiro é bafão na certa...
Certas viagens erradas
Castelo do século X, em Guimarães, onde começou Portugal
Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 03/09/2010
Viagens, até as erradas são ótimas. É o que diz a alma nômade que me habita, depois de eu ler trechos de um diário de viagem retirado do armário. Mais de um ano se passou, mas as emoções voltam nas imagens registradas por minha letra tremida, ali, no calor da hora, no norte de Portugal. Agora é cena de cinema: eu e uma velhinha miúda, sozinhos na plataforma, à espera de um trem, ou melhor, de um comboio, que nos levasse à cidade histórica de Guimarães. Voltemos a fita.
Eu tinha saído de Porto, com destino ao berço da formação de Portugal, o reino primeiro de Guimarães. Este é o comboio, indicou-me um fiscal da estação. No vagão, logo entrou a tal velhinha, guiada pelo mesmo fiscal. Bem baixinha ela, menos de metro e meio, com uma capa de chuva azul, abotoada até o pescoço (embora fizesse sol), e puxando um carrinho de feira com rodinhas. Eu acordara dispersivo, e sem demora deixei-me arrebatar pela paisagem.
Depois da estação Ermesinde, notei que já não mais coincidiam as paradas com o itinerário fixado no comboio. Fui prestar atenção: aquele roteiro não terminava em Guimarães, mas em Caíde! O fiscal no Porto dissera que era aquele trem... Pois não era! Em Caíde, fim da linha, eu e a senhorinha de capa caímos na real do erro. Contei o ocorrido ao fiscal do lugar, que rubricou nossos bilhetes, e voltamos no mesmo comboio até Ermesinde, onde deveríamos tomar outro para Guimarães – e que só passaria dali a duas horas!
Ajudei a minha parceira de engano a subir as escadas, puxando eu o seu carrinho de feira, e eis a cena de nós dois sozinhos na gare. Não xingamos o fiscal do Porto, envoltos na curiosa cumplicidade de seres confiantes no destino. Passava do meio-dia, eu precisava comer alguma coisa. Minha amiga sem nome não quis nada, tinha seu lanche. Deixei-a na estação, zanzei pela cidade, comi frutas e voltei à nossa espera silenciosa. Ermesinde: um toque de Hermes, deus das estradas?
Por fim, Guimarães. Na estação, a velhinha portuguesa apertou-me as mãos e disse: que tua vida seja de muitas felicidades. Suas mãos eram quentes. E eu segui feliz, feliz.