Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







sábado, 21 de agosto de 2010

Na floresta (a teen story)


Nivaldo Pereira
Publicado no Pioneiro, 25/03/2006

“Ainda está longe?”
“Sim. Te avisei que a caminhada era longa.”
“Não estou me queixando. É só pra saber...”
“Você gosta mesmo de saber das coisas, hein? Senão não toparia meu convite para se embrenhar nessa floresta onde nunca pisou antes. Não tem medo?”
“Medo? De quê?”
“Você mal me conhece. Eu posso seu um psicopata, desses dos filmes adolescentes. Na minha mochila pode ter uma serra elétrica...”
“Você não tem cara de psicopata. Tem cara de anjo”
“Anjos também podem debandar para o mal. Tem sido assim desde Lúcifer.”
“Não adianta. Não vai conseguir me assustar. Eu percebi tua alma desde aquele primeiro dia de aula. E ela é do bem.”
“Teus olhos é que são do bem. O mundo é o que a gente vê.”
“Pode ser. Interessante essa tua jaqueta. É pêlo de que bicho?”
“Acho que de lobo. É muito antiga. Foi do meu avô. Estava jogada no fundo de um baú, no porão. Mandei lavar e uso sempre que venho para a floresta.”
“Só usa ela aqui, então? Por quê?”
“Meu avô era caçador. Deve ter matado esse lobo por essas bandas. Gosto de devolver o animal para o elemento dele. E você, por que está usando esse boné vermelho?”
“Ele também estava num velho baú. Minha mãe ganhou quando era mocinha. Guardei para uma ocasião especial. Hoje achei que era a hora.”
“Falando em hora, hora do lanche. Eu trouxe sanduíches e suco.”
“Ah, eu preparei um piquenique quase completo. Aqui está a toalha xadrez. Não ria, por favor. Aqui biscoitos, pote de mel. Alô, formigas, podem vir...”
“Não abra o mel. Ursos sentem o cheiro dele a até cinco quilômetros de distância. Pode ser perigoso.”
“E aqui tem ursos? Nunca ouvi falar...”
“Nunca se sabe. Não tenho idéia do que se esconde nessa floresta.”
“Você não disse que conhecia essas trilhas como a palma da sua mão?”
“Eu menti. Nunca entrei tão a fundo no mato como agora.”
“Continua querendo me assustar... Já te conheço muito bem.”
“Não, não me conhece. Eu menti também sobre a tal árvore milenar, sobre o lago lilás, sobre tudo. Tudo foi mentira.”
“E por que isso?”
“Para te pôr à prova. Você tenta me seduzir desde que a gente se falou pela primeira vez. Não sou tímido, não. Me fiz de difícil para te testar. Sei que está gostando de mim. Senão, nem daria ouvidos a essa conversa maluca de lago mágico dos antigos índios e árvore que sopra o futuro.”
“Se for verdade, quer dizer, se você mentiu mesmo, então não merece minha confiança. Acho bom eu voltar.”
“Você não vai conseguir voltar. Não sabe o caminho. Está em minhas mãos. Nas mãos de um desconhecido.”
“Lembro de uma porção de coisas. Tenho mania de ir quebrando galhinhos por onde passo, vou achar as pistas de volta... Ei, vamos parar com essa brincadeira? Agora estou falando sério.”
“Eu também. Veja nos meus olhos se estou mentindo. Você não disse que percebe minha alma? Então, confira pessoalmente.”
“Nossa! O que é isso em seus olhos? Você está me assustando. Pare, por favor. Vamos voltar. Ou eu vou gritar.”
“Pode gritar. Abra o pote de mel também. Assim os ursos chegam mais rápido.”
“Pare, desvie esses olhos vermelhos de mim. Você parece um demônio! Um lobo! Vou gritar...”
Coração aos pulos. Suor na testa. Alguém escutara seu grito? O visor vermelho do rádio-relógio marcava quatro e quinze da madrugada. Sempre tinha pesadelos na véspera do aniversário, não tão densos como esse, de hoje, quando faria 13 anos. Aos poucos foi pensando nele. No blog lido na noite, a pergunta: animais de estimação? E a resposta dele: “Nenhum, pois lobos não servem para o cativeiro.” Ela não dormiu mais. Percebia-se verdadeiramente apaixonada.

3 comentários:

  1. Nivaldo,
    Depois de ler uma crônica sua sobre “Grande Sertão: Veredas”, eu tomei coragem e encarei o livro que há muito tempo temia. Obrigado pelo belo texto sobre a obra de Guimarães Rosa, obrigado por despertar a curiosidade nos leitores.
    [tentei também eu escrever algo sobre GS:V no meu blog]

    Forte abraço! Marcos Mantovani

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  2. Adorei essa história lokinha...
    Perfeita e com um toque de romantismo!
    É o lobo,é o lobo...
    Beijos Nivaldo!!

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  3. Marcos, fiquei muito contente de te ter estimulado em direção ao Rosa. Li o teu texto, muito bom, parabéns, faz jus à grandeza do livro. Abraço pra ti, apareça sempre aqui na casa.
    Madá, esta historinha teen é uma homenagem a todos os lobos e chapeuzinhos vermelhos, e ao cineasta irlandês Neil Jordan, que rodou o filme Na Companhia dos Lobos, que eu adoro. Beijos pra ti.

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