Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Tum-tum-tum


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 18/06/2005

Có-cocóóóó-cocóóóó. O som antecipou a entrada desesperada de uma galinha pela porta aberta daquela escola do interior. Atrás dela vinha um galo, ávido por bicá-la na cabeça e promover a cópula rápida dos galináceos. Có-có-có-cós daqui e dali, e pronto: a união foi consumada no meio da sala de aula. A turma caiu na gargalhada. Aos gritos, alguns moleques se apressaram em expulsar dali os amantes emplumados. A professora ralhou, mais pela demonstração de malícia infantil do que pela balbúrdia. Naquela pequena escola, com a mesma professora, eu aprenderia que onomatopéia não era o nome de algum bicho exótico, tipo uma centopéia gigante com mil patas, mas sim a classe das palavras que reproduzem sons e ruídos, como o có-có-có ambíguo da galinha.
Passei a gostar da graça das onomatopéias. Talvez porque elas estejam sutilmente associadas à inocência da primeira infância. Criancinhas que estão aprendendo a falar vivem de onomatopéias. Cachorro vira au-au, pinto vira piu-piu e a vaca é apenas mu-mu. Os adultos entram no jogo e são os primeiros a apontar a ovelha e chamá-la de béééé. Daí a gente cresce, aprende o nome sério das coisas, começa a abandonar a inocência e já não terá o menor sentido chamar o feroz pit-bull de au-au.
Minhas primeiras memórias de onomatopéias vêm das exibições do antigo seriado Batman e Robin, durante as brigas da dupla dinâmica com os vilões e seus capangas. Na telinha surgia um festival de soc, zum, craz, pow, biff... As histórias em quadrinhos também eram pródigas em popularizar onomatopéias, e eu, sem nada saber de inglês, me perguntava por que o beijo tinha som de smack e não chuac...
Nessa mesma época de quadrinhos e heróis eu conheci uma onomatopéia da qual jamais esqueci: a terrível tchiii. Foi quando vi uma sessão de marcação de gado. Cada rês era encurralada num canto do cercado de madeira, até receber o ferro em brasa, com as iniciais do fazendeiro em vermelho-fogo. Tchiiii. O animal pulava de dor e era liberado, já com o lombo ferido pela cicatriz eterna do seu novo dono. Até hoje é nítido em minha lembrança o som do ferro queimando o couro bovino. Tchiiii. Cheiro de carne tostada, onomatopéia cruel.
A adolescência vem com novas aspirações, novos sons e suas respectivas onomatopéias. Chuac: o primeiro beijo, ainda na bochecha. Plaft: um tombo na quadra de esportes. Cataplaft: uma baita queda da bicicleta. Blim, blom, blem: aprender violão é dose! Plam: porta fechada, de raiva, na cara de alguém. Vrum-vrum: sai da frente que sou barbeiro nessa moto! Hic-hic: o primeiro porre. Zuuiinn: a cabeça depois do porre Tum-tum-tum: o coração sentindo a paixão. Snif-snif: lágrimas de amor, depois de levar um fora. Glupt, lept, chuaaaaac: agora sim, um beijo de cinema. Clic: uma foto da gente para a posteridade.
E surgem as onomatopéias da vida adulta, já tão longe da inocência infantil e sua sonoridade encantada. Plim, plim, plim: o que vale agora é moeda em caixa. Trim, trim, trim: os telefones tocam o tempo inteiro. Toc-toc-toc: não abre, pode ser um assaltante. Uóóóóó: a ambulância não pára nessa cidade violenta. Cabrum: o temporal desabrigou milhares de favelados e soterrou dezenas. Ratatatá-tatá: as metralhadoras nunca silenciam no Iraque. Buuuummm: por que não proíbem o uso de minas que amputam os corpos de inocentes africanos? Bang-bang-bang: era só uma menina, por que fizeram isso, meu Deus? Tu-tu-tu-tu: não adianta insistir, o fone está fora do gancho...
Rá-rá-rá: era para ser um texto risível, sobre a história de uma galinha perseguida por um galo. Tchiiii: mas a marca da crueldade humana sempre aparece, atrapalhando tudo. Snif-snif: e eu choro por mim, por você, por nós. Vruummm: vamos fugir desse lugar, oh, baby. Tum-tum-tum: espera, ainda ouço o bater de corações, nem tudo está perdido. Tum-tum-tum: é verdade, batem muitos corações! Tum-tum-tum: acordem, corações, levemos a esperança ao planeta. Tum-tum-tum: corações do mundo, uni-vos, e que os pit-bulls voltem a ser inofensivos au-aus, como na visão do profeta bíblico. Tum-tum-tum: nada pode abafar esse som, a voz do coração do homem. TUM-TUM-TUM: não está escutando o seu?

3 comentários:

  1. É, as onomatopéias (palavra que realmente lembra centopéias, impossível ser diferente) fazem parte do nosso dia a dia. Como uma leitora que já teve um terrível vício por gibis (e eu ainda não resisto a um) digo: adoro as onomatopéias, elas realmente acrescentam muito!

    Grande texto, Nivaldo!

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  2. Oi Nivaldo!
    Lembrando da gramática as minhas experiências de vida. Achei muito Legal sua evolução da onomatopéia em termos de fases da vida - criança, jovem e adulto. Fiquei imaginando como seria esses sons na velhiçe. Algo como ai ai ai, hum hum hum, treck (estalo do osso), atchim (espirro o tempo todo), cof, cof, cof (pigarreando muito) e assim por diante.È divertido pensar dessa forma. Rrsrsr
    Outra(não se trata de onomatopéia), mas o chamado minerês é mais ou menos desse jeito: uai, corguinho, voismice, poquim, asvéiz, bão, procês, vencá, mió e por ai vai.
    Beijo grande. Madá

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