Terceira Casa?

No mapa astral, a Terceira Casa é o setor das comunicações e expressões,
textos, falas e pensamentos. Sobre o quê? Sobre si mesmo, sobre o mundo ao
redor, sobre tudo. É isso aqui.







sábado, 28 de agosto de 2010

Mais e melhores vampiros

Na onda da vampiromania crepuscular, acaba de sair uma nova edição do romance Entrevista com o Vampiro, de Anne Rice, publicado em 1976 e que ganhou no Brasil tradução de Clarice Lispector - sentiram o valor da obra? O livro deu origem ao filme homônimo, de 1994, dirigido por Neil Jordan, com os astros Tom Cruise, Brad Pitt e Antonio Banderas no elenco. Um destaque no filme é a então menina Kirsten Dunst, como a vampirinha Claudia, já mostrando o talento que a consagraria em papéis como a namorada do Homem Aranha e a Maria Antonieta de Sofia Coppola. O livro e sua continuação, O Vampiro Lestat, inspiraram Sting na canção Moon Over Bourbon Street, que é uma beleza. A canção não entrou no filme, mas vejam um clipe juntando as duas coisas.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Vampiração


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 27/08/2010

A vampirada está pirada. Qual o sentido de atravessar milênios de sombras e névoas, entre lúgubres esquifes e tumbas gélidas, fugindo do sol e das cruzes, se de repente ser vampiro virou moda? Cadê o estado de exceção, a condição de proscrito, o peso da maldição? Que graça tem ser hype e freqüentar o sonho de sedução das grifosas meninotas? Se a antiga vítima agora quer virar predador, qual o futuro da raça? A situação é deveras preocupante.

Não faz muito, o mal era mal mesmo, o mundo se dividia em luzes e trevas e até havia comunistas e capitalistas. Agora, tudo é crepúsculo, lusco-fusco, penumbra difusa, identidade confusa. Tudo agora é relativo, tudo pode ser. Ética, moral e bem são conceitos negociáveis e adaptáveis a situações. E como cultuar o diabo ainda pode ofender muita gente, nesses diabólicos tempos do politicamente correto, a galera foi buscar no secretário do demo, o vampiro, seu totem moderno.

Conde Drácula está trincando os caninos de raiva. Nosferatu promete lançar mil novas pragas e vírus nessa cambada sem noção. Pensam que é somente esse lero-lero de vida eterna, pele branquinha e velocidade da luz? Vão se catar! Querer fazer da minoria mais secreta e maldita uma tendência é sacanagem! Ainda mais inventando essa besteira de sangue sintético e dieta vegetariana para vampiro... E mais ainda com uma gentinha louvando a temática vampiresca por ter atraído os adolescentes ao mundo da leitura. Vampiros do bem! Tem cabimento?

Ai, que saudade da Idade Média, do inferno, purgatório e céu de Dante! Que falta faz a moral inflexível da Inglaterra vitoriana! Fosse isso naqueles tempos, os emos iam gemer no tronco do juremá. Agora, na onda do liberou geral e do pode tudo, o mal perdeu a maldade, ficou chique, virou fetiche. Já se corre o risco de se perguntar a uma criança o que ela quer ser quando crescer e a resposta ser uma só: vampiro!

Corre nas bocas miúdas e com caninos que a vampirada da velha guarda vai descer o laço num tal de Edward. Nunca a classe esteve tão em baixa, tão vulgarizada. Pois saibam todos que respeito é bom, e vampiro também gosta.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Um virginiano

A deusa Astréia vivia na terra na Idade do Ouro, num mundo perfeito, sem crimes nem injustiças. Com a corrupção da humanidade, ela sofreu demais, e pediu ao pai, Zeus, que a levasse para o céu, de vez. Buscar a perfeição e a pureza em cada detalhe talvez seja a tentativa dos virginianos de restaurar o paraíso perdido, na reintegração entre homem e natureza. Michael Jackson, nascido a 28 de agosto de 1958, foi um virginiano típico: multitalentoso, perfeccionista, exigente e sempre eficiente. Vivia em seu mundo particular, uma terra do nunca, entre crianças e animais, fugindo da poluição e das mazelas do resto do mundo. A infância perdida jamais foi recuperada, tornando-o doente, carente, estranho a esse planeta. Mas foi genial, isso ninguém duvida.

Contos astrais: Virgem


Nivaldo Pereira

Ninguém merece isso! Uma hora e meia de espera! É muita falta de respeito! Por que diabos marcam hora de consulta? Se fosse ele o atrasado, no mínimo nem seria atendido. Olhou de novo o relógio. Quis pegar outra revista de futilidades, mas já tinha folheado todas. Será que revista de consultório médico não pode ter conteúdo? A irritação reavivou o incômodo nas entranhas. Não uma dor aguda, mas uma sensação esquisita, como se um bicho estivesse caminhando pelas volutas de seu intestino. Deve ser um alien, pensou, imaginando-se explodindo para libertar um pequeno monstro intergaláctico que devia ter se alojado em seu interior. No dia da primeira consulta, o médico perguntara se ele era calmo ou controlado. Teve que rir quando admitiu um auto-controle absoluto. Como ser diferente? Como não se importar com tanta imbecilidade, tanto desrespeito?

A mão suava, segurando a coleção de radiografias dos exames feitos. Em casa ele tinha olhado o laudo dos resultados: termos médicos, de difícil compreensão. Foi pesquisar cada um na internet. Ficou assustado com umas tais diverticuloses. Não foi disso que morreu o Tancredo Neves? No resto, a certeza de uma úlcera em formação. Já sabia de tudo: o médico iria prescrever uma dieta rigorosa, remédios mais fortes que os da gastrite e calma, muita calma. Baita ironia recomendar calma ao paciente quando o próprio doutor não o respeita, deixando-o nessa sala horrenda de tons pastéis e quadros de uma paz falsa, no meio de uma gente vítima de problemas gástricos e intestinais. A secretária ainda teve o desplante de vir pedir a ele que desse a vez a uma senhora de idade. Disse sim, sempre dizia sim, sempre fazia favores. Chega! Iria embora dali já! Imaginou-se batendo a porta e soltando um palavrão cabeludo, mas apenas disse à atendente que precisava sair e que marcaria outra hora. Tudo muito educado. Sempre muito educado...

Voltou a enrolar as radiografias em canudo e as guardou na mochila, agora sem preocupação de que amassassem. Definitivamente não queria mais pisar os pés naquele consultório nem ver a cara daquele médico. Saiu caminhando pelas ruas do centro da cidade. A mãe iria questionar seu gesto desarvorado de sair sem ter sido atendido. Pensou numa desculpa. Muita gente, urgências chegando, teve que dar a vez a uma senhora – e isso nem era mentira. A mãe. Limpe os pés, lave as mãos, estique o lençol, tire os cotovelos da mesa, não mastigue de boca aberta, não molhe a borracha de saliva, não risque o livro de caneta. A mãe. É para o seu bem, não reclame, coma tudo, engula o choro, não deixe o gato subir na cama. Nessa tarde ele não voltaria ao trabalho. O pai sabia dos exames. Entenderia a demora. O pai. Outra casa, outra mulher, outros filhos, irmãos pela metade, sem nenhum afeto. O pai. Um homem trabalhador, a quem obedecia, mas não amava. Seu pai, seu patrão, carreira promissora como gerente exemplar na rica empresa de limpeza industrial.

Andando a esmo, sentiu-se confuso, talvez percebendo a proximidade da culpa pelo que fizera. Detestava a sensação de culpa, mas vivia dentro dela. Culpa de ter cursado administração de empresas e não veterinária; de ter silenciado, por medo de um não, ao amor que sentira na adolescência; de ser como era, de ser quem era, com esse nome estranho: Astreu. Alvo de gozações desde criança. Astreu, tua língua o gato comeu. Astreu, pega no meu. Mas era o mesmo nome do avô, a quem ele adorava. Por isso nunca reclamara. O avô. Vivia sozinho num sítio, de onde nunca quisera sair. Vô Astreu. Esse sim, era feliz, longe dessa imundície de cidade corrupta. Um ganido lancinante o tirou das lembranças do avô e ele viu o cão de rua sair se arrastando, curvado ao meio, uivando de dor depois do brutal chute nas costelas dado pelo homem da fruteira. Nunca tinha reagido assim, mas num impulso gritou ao outro que fosse chutar a própria mãe. Babaca! Covarde! Monstro! Covarde!

O homem da fruteira pegou um porrete e veio em sua direção. Era imenso. Vermelho e imenso. E o porrete na mão, olhos injetados de ódio, praguejando de volta sua fúria contra o rapaz franzino que ousara desafiá-lo. Um rapaz que não arredara pé do lugar, ali, do outro lado da rua, sustentando na boca raivosa o vil xingamento de covarde, covarde, e a mãe no meio. Ah, esse moleque besta vai receber sua lição, vai sim. Vai saber quem é babaca, quem é covarde. Vai latir mais do que o cachorro sarnento que ele quis defender. É melhor correr, desgraçado! Vamos, corre. Corre, senão vou ter que te arrebentar. Vou te cobrir de pau, sacana. Não vai correr? Quer me diminuir? Então quer me encarar? Toma, toma, toma, toma, seu cachorro. Não vai gritar? Toma outra, toma mais...

Tudo muito rápido. Um zunido na cabeça, se afinando, afinando, até sumir. O silêncio e o branco. Depois o verde. Mato? Água? Vô Astreu o ensinando a nadar. O riacho morno correndo, passando através de si. Ele mesmo uma fonte quente. Tudo ficando mais longe. Tudo indo e vindo. Noite e dia, de repente. Fiapos de vozes. No meio do branco, o avô sentado na porta da casa de madeira. Ele no colo do avô. Ecos da passarada ao anoitecer. Ninhos nas árvores, bichos andando soltos, felizes, entre arbustos e flores. A vida inteira feliz. Ele voando. Um mundo perfeito.

sábado, 21 de agosto de 2010

Na floresta (a teen story)


Nivaldo Pereira
Publicado no Pioneiro, 25/03/2006

“Ainda está longe?”
“Sim. Te avisei que a caminhada era longa.”
“Não estou me queixando. É só pra saber...”
“Você gosta mesmo de saber das coisas, hein? Senão não toparia meu convite para se embrenhar nessa floresta onde nunca pisou antes. Não tem medo?”
“Medo? De quê?”
“Você mal me conhece. Eu posso seu um psicopata, desses dos filmes adolescentes. Na minha mochila pode ter uma serra elétrica...”
“Você não tem cara de psicopata. Tem cara de anjo”
“Anjos também podem debandar para o mal. Tem sido assim desde Lúcifer.”
“Não adianta. Não vai conseguir me assustar. Eu percebi tua alma desde aquele primeiro dia de aula. E ela é do bem.”
“Teus olhos é que são do bem. O mundo é o que a gente vê.”
“Pode ser. Interessante essa tua jaqueta. É pêlo de que bicho?”
“Acho que de lobo. É muito antiga. Foi do meu avô. Estava jogada no fundo de um baú, no porão. Mandei lavar e uso sempre que venho para a floresta.”
“Só usa ela aqui, então? Por quê?”
“Meu avô era caçador. Deve ter matado esse lobo por essas bandas. Gosto de devolver o animal para o elemento dele. E você, por que está usando esse boné vermelho?”
“Ele também estava num velho baú. Minha mãe ganhou quando era mocinha. Guardei para uma ocasião especial. Hoje achei que era a hora.”
“Falando em hora, hora do lanche. Eu trouxe sanduíches e suco.”
“Ah, eu preparei um piquenique quase completo. Aqui está a toalha xadrez. Não ria, por favor. Aqui biscoitos, pote de mel. Alô, formigas, podem vir...”
“Não abra o mel. Ursos sentem o cheiro dele a até cinco quilômetros de distância. Pode ser perigoso.”
“E aqui tem ursos? Nunca ouvi falar...”
“Nunca se sabe. Não tenho idéia do que se esconde nessa floresta.”
“Você não disse que conhecia essas trilhas como a palma da sua mão?”
“Eu menti. Nunca entrei tão a fundo no mato como agora.”
“Continua querendo me assustar... Já te conheço muito bem.”
“Não, não me conhece. Eu menti também sobre a tal árvore milenar, sobre o lago lilás, sobre tudo. Tudo foi mentira.”
“E por que isso?”
“Para te pôr à prova. Você tenta me seduzir desde que a gente se falou pela primeira vez. Não sou tímido, não. Me fiz de difícil para te testar. Sei que está gostando de mim. Senão, nem daria ouvidos a essa conversa maluca de lago mágico dos antigos índios e árvore que sopra o futuro.”
“Se for verdade, quer dizer, se você mentiu mesmo, então não merece minha confiança. Acho bom eu voltar.”
“Você não vai conseguir voltar. Não sabe o caminho. Está em minhas mãos. Nas mãos de um desconhecido.”
“Lembro de uma porção de coisas. Tenho mania de ir quebrando galhinhos por onde passo, vou achar as pistas de volta... Ei, vamos parar com essa brincadeira? Agora estou falando sério.”
“Eu também. Veja nos meus olhos se estou mentindo. Você não disse que percebe minha alma? Então, confira pessoalmente.”
“Nossa! O que é isso em seus olhos? Você está me assustando. Pare, por favor. Vamos voltar. Ou eu vou gritar.”
“Pode gritar. Abra o pote de mel também. Assim os ursos chegam mais rápido.”
“Pare, desvie esses olhos vermelhos de mim. Você parece um demônio! Um lobo! Vou gritar...”
Coração aos pulos. Suor na testa. Alguém escutara seu grito? O visor vermelho do rádio-relógio marcava quatro e quinze da madrugada. Sempre tinha pesadelos na véspera do aniversário, não tão densos como esse, de hoje, quando faria 13 anos. Aos poucos foi pensando nele. No blog lido na noite, a pergunta: animais de estimação? E a resposta dele: “Nenhum, pois lobos não servem para o cativeiro.” Ela não dormiu mais. Percebia-se verdadeiramente apaixonada.

Efeito saci


A internet não conecta, o computador trava, os e-mails se extraviam, o celular é esquecido em algum lugar, chovem ligações erradas, a porta bate com a chave dentro, some a chave do carro, cabos e conexões não funcionam, tudo atrasa, tudo trunca, aumentam os mal-entendidos e os desencontros, as palavras são interpretadas de forma equivocada, um detalhe emperra o movimento das coisas, e todo mundo fica mais desatento e irritado com tudo. Bem-vindos aos sinais de mais um período de Mercúrio retrógrado no céu, de 20 de agosto a 12 de setembro. É como se o deus mensageiro resolvesse testar a paciência dos mortais, feito um saci celeste, rindo da nossa cara de baratinados com as picuinhas do cotidiano. Há que se ter muita paciência e conferir tudo em dobro, dobrar a atenção aos detalhes. Ao menos o período é bom para concluir coisas pendentes, retomar projetos parados. E olhar para dentro. Nada é tão grave, mas que irrita, ah, irrita...

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Quando fui velho


Eis o elenco da Farsa, com o "velho", à esquerda, ainda de cabelos escuros

Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 20/08/2010

Dizem que baiano não nasce: estréia. E que baiano não morre: sai de cena. Longe de mim sequer questionar esses ditos irônicos sobre a exuberante faceta artística ou exibida de meu povo. Embora eu seja tímido (juro) e não tenha coragem de subir num trio elétrico (ou só falo isso porque nunca fui chamado?), já tive passagens pelo teatro, em que amigos apenas comentaram: ele se presta... Pois já me prestei a encarnar um velho gaúcho estancieiro, o seu Jesuíno, na peça A Farsa da Esposa Perfeita, numa performance – digamos – marcante.
Sabendo que topo maluquices, a Zica Stockmans me convenceu a ser o velho Jesuíno. Na composição do personagem, ficou claro que eu deixaria os cabelos grisalhos com um truque comum dos teatreiros: espargir na cabeça graxa líquida Nugget branca para sapatos. Depois da peça, garantiu-me a Zica, era só sacudir o cabelo, que saía toda a tinta, feito farinha. Para não ter trabalho, não usei a graxa em nenhum ensaio. No dia da estréia, na função de carrega e monta cenário, é que lembrei: faltava comprar a Nugget. Fui a um armarinho ali perto. Sorte: entre frascos de Nugget de tudo que é cor, só uma branca. Depois, já com o figurino, tasquei o líquido no cabelo. Quando secou, uma beleza: fiquei com uns 70 anos.
Teatro lotado, tensão de estréia, frio de junho no palco, rolou a peça, correu tudo bem. Beijos e abraços nos camarins. E haveria uma recepção no saguão do teatro. Trocamos de roupa, e fui sacudir o cabelo. Nada! Cabeça na torneira fria. Nada! Ziiicaaaa, berrei. Onde estava o tal sacudir que a tinta sai? Fiz um drama histérico no camarim: ninguém sai daqui até eu ter meu cabelo de volta! Espantada, a Zica foi conferir o frasco. Não era graxa líquida! Era tinta branca para tênis, de outra marca, e o distraído aqui nem tinha reparado. E tinta é tinta – e pinta.
Ser ou não ser? Não havia tempo para decidir. Enfiei uma touca na cabeça, e fomos à recepção. Eu precisava beber... Já em casa, até a madrugada eu ainda estava debaixo do chuveiro quente, remoçando aos poucos.
Naquela noite eu aprendi o que é carregar nas tintas do personagem.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Luz do Verbo

Para quem não sabe, ou é de fora de Caxias do Sul, o Luz do Verbo é um projeto em que eu e o poeta Marco de Menezes, uma vez por mês, na Do Arco da Velha Livraria e Café, revisitamos autores e obras que abriram filões na literatura e na cultura pop. Tem clima de sarau, regado a vinho e café, com direito a canções ao violão da Camila Cornutti, trechos de filmes e imagens e a leitura dramática do ator Maquiam Silveira. Cada edição é uma viagem, um clima. A gente adora fazer. Vejam abaixo as chamadas para as três edições anteriores, criadas pela Camila Cornutti. Neste mês temos o Hermann Hesse, e em setembro, Fernando Pessoa. Vão perder?


Viva Hesse!


O que a obra de Paulo Coelho e a literatura de auto-ajuda de hoje têm a ver com Hermann Hesse e o seu romance Sidarta, publicado em 1922? Buscar respostas a essa questão é uma das metas da quarta edição do projeto Luz do Verbo, que ocorre dia 18 de agosto, quarta-feira, às 20h, na Do Arco da Velha Livraria e Café. O encontro literário mensal apresentado pelo poeta Marco de Menezes e pelo jornalista Nivaldo Pereira contará com projeção de imagens e leituras dramáticas do ator Maquiam Silveira, além da luxuosa participação de Swami Sagara e grupo, tocando mantras indianos. A entrada é franca.
Como fica evidente, esta edição do Luz do Verbo vai examinar o filão literário de cunho espiritualista e psicanalítico, destacando o orientalismo, a partir da contribuição original do alemão Hermann Hesse (1877-1962). Filho de missionários protestantes, Hesse negou o caminho do sacerdócio esperado pelos pais, mas fez da busca do sentido da vida uma base de sua literatura. A filosofia de Nietzsche e a psicologia de Jung, ao lado de vivências na Índia, influenciaram o discurso de Hesse em obras clássicas como Demian (1919), Sidarta (1922) e O Lobo da Estepe (1927). Sidarta, particularmente, traz para a alta literatura a temática oriental, num caminho que vai ganhar força na contracultura dos beatniks dos anos 1950 e dos hippies dos 1960. Durante muito tempo, ler as obras de Hesse fazia parte da iniciação dos interessados em autoconhecimento.
Prêmio Nobel de Literatura em 1946, Hermann Hesse inovou na temática, estrutura e linguagem de suas obras, abrindo novas rotas na criação. Clarice Lispector, por exemplo, sempre assumiu a importância da leitura de O Lobo da Estepe em seu próprio universo literário. A partir dos anos 1980, a indústria cultural diluiu e vulgarizou o caminho legado por Hesse. Surgiram os livros com fórmulas rápidas de iluminação, sem nenhum valor artístico e sem densidade. Resgatar Hesse é buscar as perguntas sobre a vida, e não respostas prontas.

Projeto Luz do Verbo
Tema: Se Oriente (pela constelação de Hesse)
Dia: 18 de agosto, quarta-feira, 20h
Do Arco da Velha Livraria e Café (Rua Os 18 do Forte, 1.690, fone 3028.1744)
Entrada franca

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Tum-tum-tum


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 18/06/2005

Có-cocóóóó-cocóóóó. O som antecipou a entrada desesperada de uma galinha pela porta aberta daquela escola do interior. Atrás dela vinha um galo, ávido por bicá-la na cabeça e promover a cópula rápida dos galináceos. Có-có-có-cós daqui e dali, e pronto: a união foi consumada no meio da sala de aula. A turma caiu na gargalhada. Aos gritos, alguns moleques se apressaram em expulsar dali os amantes emplumados. A professora ralhou, mais pela demonstração de malícia infantil do que pela balbúrdia. Naquela pequena escola, com a mesma professora, eu aprenderia que onomatopéia não era o nome de algum bicho exótico, tipo uma centopéia gigante com mil patas, mas sim a classe das palavras que reproduzem sons e ruídos, como o có-có-có ambíguo da galinha.
Passei a gostar da graça das onomatopéias. Talvez porque elas estejam sutilmente associadas à inocência da primeira infância. Criancinhas que estão aprendendo a falar vivem de onomatopéias. Cachorro vira au-au, pinto vira piu-piu e a vaca é apenas mu-mu. Os adultos entram no jogo e são os primeiros a apontar a ovelha e chamá-la de béééé. Daí a gente cresce, aprende o nome sério das coisas, começa a abandonar a inocência e já não terá o menor sentido chamar o feroz pit-bull de au-au.
Minhas primeiras memórias de onomatopéias vêm das exibições do antigo seriado Batman e Robin, durante as brigas da dupla dinâmica com os vilões e seus capangas. Na telinha surgia um festival de soc, zum, craz, pow, biff... As histórias em quadrinhos também eram pródigas em popularizar onomatopéias, e eu, sem nada saber de inglês, me perguntava por que o beijo tinha som de smack e não chuac...
Nessa mesma época de quadrinhos e heróis eu conheci uma onomatopéia da qual jamais esqueci: a terrível tchiii. Foi quando vi uma sessão de marcação de gado. Cada rês era encurralada num canto do cercado de madeira, até receber o ferro em brasa, com as iniciais do fazendeiro em vermelho-fogo. Tchiiii. O animal pulava de dor e era liberado, já com o lombo ferido pela cicatriz eterna do seu novo dono. Até hoje é nítido em minha lembrança o som do ferro queimando o couro bovino. Tchiiii. Cheiro de carne tostada, onomatopéia cruel.
A adolescência vem com novas aspirações, novos sons e suas respectivas onomatopéias. Chuac: o primeiro beijo, ainda na bochecha. Plaft: um tombo na quadra de esportes. Cataplaft: uma baita queda da bicicleta. Blim, blom, blem: aprender violão é dose! Plam: porta fechada, de raiva, na cara de alguém. Vrum-vrum: sai da frente que sou barbeiro nessa moto! Hic-hic: o primeiro porre. Zuuiinn: a cabeça depois do porre Tum-tum-tum: o coração sentindo a paixão. Snif-snif: lágrimas de amor, depois de levar um fora. Glupt, lept, chuaaaaac: agora sim, um beijo de cinema. Clic: uma foto da gente para a posteridade.
E surgem as onomatopéias da vida adulta, já tão longe da inocência infantil e sua sonoridade encantada. Plim, plim, plim: o que vale agora é moeda em caixa. Trim, trim, trim: os telefones tocam o tempo inteiro. Toc-toc-toc: não abre, pode ser um assaltante. Uóóóóó: a ambulância não pára nessa cidade violenta. Cabrum: o temporal desabrigou milhares de favelados e soterrou dezenas. Ratatatá-tatá: as metralhadoras nunca silenciam no Iraque. Buuuummm: por que não proíbem o uso de minas que amputam os corpos de inocentes africanos? Bang-bang-bang: era só uma menina, por que fizeram isso, meu Deus? Tu-tu-tu-tu: não adianta insistir, o fone está fora do gancho...
Rá-rá-rá: era para ser um texto risível, sobre a história de uma galinha perseguida por um galo. Tchiiii: mas a marca da crueldade humana sempre aparece, atrapalhando tudo. Snif-snif: e eu choro por mim, por você, por nós. Vruummm: vamos fugir desse lugar, oh, baby. Tum-tum-tum: espera, ainda ouço o bater de corações, nem tudo está perdido. Tum-tum-tum: é verdade, batem muitos corações! Tum-tum-tum: acordem, corações, levemos a esperança ao planeta. Tum-tum-tum: corações do mundo, uni-vos, e que os pit-bulls voltem a ser inofensivos au-aus, como na visão do profeta bíblico. Tum-tum-tum: nada pode abafar esse som, a voz do coração do homem. TUM-TUM-TUM: não está escutando o seu?

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A tecla de avanço


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 13/08/2010

Gravador de fitas cassetes. Quem ainda se lembra disso? A tecla eject abria a tampa, punha-se dentro uma fita. Daí, tocava-se a fita no play, avançava-se no FF ou retrocedia-se no REW. Havia expressões de falas tiradas desse ritual corriqueiro. Conversa mole? Ih, vamos avançar a fita! Mal-entendidos e discussões? Volta a fita, volta a fita! Não faz muito tempo, eu ainda usava gravador de fitas. E já parece uma eternidade, nesses tempos em que a tecla FF da vida turbinou-se. Fico aqui matutando nisso. E se a tecla FF assumisse a forma do espírito do futuro, como no livro Um Conto de Natal, de Charles Dickens? E se esse Senhor FF nos levasse em visões para daqui a dois anos, dez, 30 anos?
Daqui a dois anos, quem se lembraria das pequenas aflições de agora? E daqui a cinco anos? O problemão que tira o sono terá sido reduzido a nada. As picuinhas do trabalho terão virado uma névoa sem vestígio. Pessoas hoje importantes poderão ter sumido do mapa, reduzidas a traços vagos de fisionomia. Depois de tantas ondas no mar da vida, mesmo os terrores mais cruéis terão se diluído, quiçá perdido a importância. Até a tecla FF chegar ao limite da fita, fim da linha do destino, e aí, quase nada terá qualquer valor. A não ser...
O que queremos todos do futuro? Ser felizes, não é? Isso é regra desde os velhos contos de fadas: que no tempo do “para sempre”, sejamos felizes. Só que já aprendemos que esse tempo não surge assim, feito mágica. É preciso ser construído, um pouco por dia, toda hora. Por isso, devemos ter cuidado com o que gravamos na fita dos nossos momentos. Tudo o que atravanca a felicidade deve ser reduzido, até perder força pela própria falta de atenção. Como saber o que focar? Cada um deve procurar seu jeito. Mas um bom truque seria evocar o Senhor FF em placas com a pergunta: daqui a dez anos, o que você quer guardar disso? Em se tratando de miudezas que atormentam, ninguém vai querer guardar nada.
O Senhor FF ainda me lembra que, em toda fita, sons barulhentos podem receber outra gravação por cima – com perdão, esquecimento, desapego. Stop. Vamos descomplicar?

Leminski de novo (e sempre)

"INCENSO FOSSE MÚSICA

isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além"

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Conexões


Este é um post sobre posts, sobre conexões com ou sem sentido, aqui nesta terceira casa. Vejamos o caminho. Eu estava lá no Arco da Velha, a livraria, num papo sobre Hermann Hesse e Jung, com o Marco de Menezes, quando vi o livro Blues, de quadrinhos e desenhos do Robert Crumb. Naquele dia, o Crumb estava no Brasil, na Flip de Paraty. Bastou folhear um pouco, para eu precisar ter aquele livro em torno do blues. O Marco já tinha comprado um e me pôs pilha de "altamente recomendado". E eu nem precisava de incentivo...
Em casa, comecei a ler, e a primeira história chama-se Patton, sobre a vida e a música de Charley Patton, um mestre do começo do blues no delta do Mississipi.
Curioso: no post anterior a este, eu tinha falado do Mike Patton, outro americano, que foi vocalista do Faith No More, e de quem eu tinha virado fã depois da versão para I Started a Joke. Nesse mesmo dia, achei o novo disco de Mike Patton, chamado Mondo Cane, somente com canções antigas em italiano. O homem é um aquariano extremamente versátil, no gosto musical e nos timbres. Ele muda a voz com uma facilidade incrível, e é sempre ótimo. Quem o viu de roqueiro no Faith No More não acredita que é o mesmo cara, agora com pinta de crooner de orquestra de outros tempos. Depois de morar um tempo na Itália, ele pirou com as canções dos anos 1950 e 1960, e quis cantar igual.

Neste disco novo de Mike Patton, há as canções Il Cielo In Una Stanza (confira Patton cantando no vídeo), que foi do repertório da italiana Mina, tema de um post lá atrás, e Senza Fine, que era da trilha da minissérie Anos Rebeldes, tema de outro post lá atrás.
Voltando ao velho Patton, o bluesman do livro do Crumb, ali aparece citada a lenda do pacto com o diabo na encruzilhada, que também é um tema de Grande Sertão: Veredas, em post lá atrás.
Haverá alguma linha em todas essas ligações? Coisa de Jung? Sincronicidade? Arte do cão? Ou meras conexões da terceira casa de um geminiano?

domingo, 8 de agosto de 2010

Breguice da boa

Naquela linha estética do exagero de cores e emoções que eu tanto aprecio - e que tantos chamam de brega -, descobri anos atrás um clipe, na MTV, em que a banda Faith No More recriava o clássico romântico I Started a Joke, dos Bee Gees. Fiquei chapado com a canção. Não somente com o vocal visceral de Mike Patton (que não aparece no clipe), mas com a historinha no filme, a cenografia de boate com suas cores extremas, a bizarrice do cantor dublando no karaokê (em cena, o performer inglês David Hoyle), tudo, enfim. De quebra, comecei a prestar atenção no Faith no More depois disso. Fiquei fã do Patton. Podem conferir o cover.

Leminski


Manhã de domingo, tiro da máquina a roupa, estendo-a no varal. Abro um pouco mais a vidraça, na medida certa para um vento que seque as peças mas não gele a cozinha com o frio de inverno. De saída, espio o varal, sacundindo de leve as roupas estendidas. Fico contente feito dona de casa depois da faxina. Estranho isso: roupa limpa no varal me evoca sempre uma alegria sutil. Lembro-me na hora do saudoso Paulo Leminski (1944-1989), genial poeta doido e santo, num de seus hai-cais:

"roupas no varal

deus seja louvado
entre as coisas lavadas"

Aí vou buscar o Leminski na estante. E caio no sofá, caneca de café em punho, enrolo-me no cobertor, e leio:

"meus amigos
quando me dão a mão
sempre deixam
outra coisa

presença
olhar
lembrança calor

meus amigos
quando me dão
deixam na minha
a sua mão"

- Samurai Leminski, seu cachorro louco e lúcido, fazes uma puta falta aqui embaixo.

sábado, 7 de agosto de 2010

Sapataria do amor


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 11/06/2005

Igual a muitas outras do comércio, a vitrine da sapataria estava repleta de corações e anjinhos singelos, claramente sugerindo a cada enamorado que ali fosse comprar um mimo útil para sua cara-metade. A princípio achei forçada essa sugestão de presente. Sapatos? Mas, pensando melhor, descobri que o sapato pode ser, sim, uma curiosa metáfora do amor. Não é raro a gente dizer de alguém: “é o meu número!” Ou então evocamos o velho ditado que destina um chinelo velho a todo pé torto. Confiantes nisso, a procura do par perfeito, para além das sapatarias, vai pontuando nossa educação sentimental. E esperamos com ardor o encontro com esse ser feito na nossa medida e com quem caminharemos na vida.
Amor e sapato têm muito a ver. Há amores leves como um chinelo de dedo, naturalmente livres e desapegados, e há outros austeros como um coturno militar, cheios de amarras e regras de apresentação. Há amores exuberantes mas instáveis, carentes de equilíbrio e cuidado como um salto-agulha, e há outros aconchegantes e prosaicos feito uma pantufa usada. Há amores esportivos e joviais como um tênis, e amores que são puro verniz, sempre à mercê de arranhões definitivos, legítimas cicatrizes.
Não passamos sem amor e sem sapatos. Nas muitas vitrines da vida, eis que acontece de a gente deparar com o nosso par idealizado. Lá está ele, lindo, original, resistente, para durar a vida toda. Partimos para a prova, sentimos um certo desconforto, mas ignoramos. Não convém deixar escapar tão vistoso modelo. Seguimos andando com ele e... oh, dor! O sapato dos sonhos nos aperta o calcanhar! Tentamos paliativos, meias de algodão, curativos, mas o calo estará sempre ali, alardeando que não cabemos nessa relação.
É comum o sapato ceder e se moldar ao nosso pé, acabando o suplício, do mesmo modo como é comum a gente tolerar as diferenças gritantes dentro de um novo relacionamento, deixando-o ser como é, moldando-nos a ele. Mas acontece também de o calo nunca sarar e, pelo contrário, tornar-se crônico, a ponto de a pessoa preferir abandonar os calçados e andar descalça pelo resto da vida. Aliás, como tem gente que morre de medo de novos calos, de novas dores. Podemos até cunhar um ditado assim: antes descalço do que mal calçado.
Esses de pés desnudos sempre poderão recorrer ao abrigo de um antigo sapato, gasto, mas sempre eficiente, ainda mais nas noites invernais. É como a letra da canção Sapato Velho, sucesso de outros tempos do grupo Roupa Nova: “É, talvez eu seja simplesmente como um sapato velho / Mas ainda sirvo se você quiser / Basta você me calçar / Que eu aqueço o frio dos seus pés”.
Diante das diferenças entre nossos pés e os sapatos que encontramos, talvez o sapateiro seja uma figura providencial. Mas conheço pelo menos duas histórias de amor com final infeliz para os sapateiros. Maria Déia era casada com um, lá no sertão nordestino dos anos 1920, até o dia em que ela viu chegar Virgulino Lampião e seu bando de cangaceiros. A mulata formosa caiu de amores e não contou conversa: deixou os filhos com a avó, nem disse adeus ao sapateiro e seguiu atrás da pisada de Lampião caatinga adentro. Deixou de ser Maria Déia para tornar-se Maria Bonita. Ela e o rei do cangaço viveram juntos por quase dez anos, entre balas e espinhos, e juntos morreram, calçando as alpercatas do amor bandido.
Já a jovem catarinense Ana Maria era uma pobre mulher de sapateiro em Laguna, na década de 1830, quando teve a ventura de ser fisgada pelo olhar do guerreiro italiano Giuseppe Garibaldi. O sapateiro foi passado para trás, porque os pés de Ana acompanharam as pegadas das botinas de Garibaldi pelos pampas em revolução. Anita Garibaldi morreu na Itália em 1849. Tinha apenas 28 anos e uma heróica trajetória de lutas e batalhas ao lado do seu amor.
Os dois sapateiros abandonados talvez não tenham sabido consertar os próprios sapatos. Ficaram de pés no chão, coitados. Porque com o amor e com os sapatos sempre há o risco de aparecer um par mais perfeito. Agora, deixem-me procurar os meus chinelos...

Making of

Depois do texto sobre os pés, agora é a vez dos sapatos. O proximo texto a ser postado, Sapataria do Amor, tem uma história curiosa. Foi publicado no dia 11 de junho de 2005, e eu aproveitava o tema do Dia dos Namorados, relacionando amor e sapatos. Depois de escrito, não gostei muito do texto, achei-o meio assim, sei lá como, tanto que ele não entrou na seleção de crônicas do meu livro Mapa-múndi, lançado meses depois. Acontece que essa crônica fez um grande sucesso entre os leitores. Volta e meia alguém a comentava ou pedia que eu a enviasse por e-mail, mesmo anos depois. Eu pensava: eu e meus leitores não temos o mesmo gosto... Recentemente, quando uma desconhecida na rua me parou para comentar a famigerada crônica de cinco anos, resolvi buscá-la no banco de dados. Fiz uma leitura dela na Revista da Casa, na Casa de Teatro, no dia 12 de junho de 2010, Dia dos Namorados. O povo gostou. Talvez agora eu passe a gostar também.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Pode falar


Nivaldo Pereira
Crônica publicada no Pioneiro, 06/08/2010

Resolvi contar: um, dois, três, quatro... lá adiante cinco, seis... e sete! No percurso de uma única quadra, cruzei com sete pessoas andando e falando ao telefone celular. Nada demais. A toda hora, em todo lugar, tem sempre alguém falando ao celular. É quase um uniforme eletrônico da moderna urbe, um crachá do mundo globalizado. Todos em sintonia, comunicação geral. Será?
É confortante saber que agora somos todos localizáveis, sempre disponíveis, ao alcance de duas ou três teclas. Há que se estar na conformidade de um tempo sem perdas de tempo. Se a vida corre, corremos atrás, equipados da melhor tecnologia. Nos teares virtuais, tecemos nossas redes de proteção, nossas tendas de relações, sem mais fios, mas com sensíveis microchips de mil contatos. Plugados, ligados, antenados. Prontos para viver a plenitude de si, o sumo do outro, o delicado da vida, como falou Clarice. Será?
Aos sons nervosos da apressada avenida se somam os fragmentos de mil falas. Onde você está? Estou chegando. Por que não me ligou? Estou na rua. Talvez de noite. Me liga avisando. Sim, posso falar. Pode deixar. Amanhã eu vejo. Passa por e-mail. Onde você está? Te ligo quando estiver chegando. Vou ficar sem bateria. Te vejo mais tarde. Será?
Eu olho as tantas pessoas andantes e falantes, qual um rebanho cibernético do qual posso logo fazer parte, bastando atender ao toque bovino do meu próprio chocalho na bolsa. Sim, estou na rua, mas posso falar. Posso falar. Posso falar. Posso falar. Todos podemos falar. Mas será que temos o que dizer? Será?
Fala-se muito, fala-se demais, pensa-se pouco, silencia-se nada. Falta escuta na conversa, falta verdade na imagem, falta honestidade na alma, falta alma no corpo. Diante de tanta falta, buscamos, corremos, queremos e falamos. Falamos e procuramos. Não sabemos bem o quê, mas vamos encontrar. Será?
Não, não, agora que nos achamos, não vamos perder o contato. Claro que te ligo. Vou ter muito mais tempo: basta um carro mais veloz, uma banda larga mais potente, um novo chip. Aí poderei viver tudo. E seremos felizes para sempre. Tem que ser. Alô?
Pode falar.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Pé sem cabeça


Nivaldo Pereira
Um videoclipe sem sentido, um caleidoscópio de imagens ao léu. Sem cabeça a regular, sem pensamento ordenador. Apenas imagens, conexões que ocorram, lembranças que surjam. Um sonho acordado, enfim. Que tudo comece e termine nos pés. Que não suba, não evolua, que fique por lá, ao rés do chão. Que os pés apenas sigam, apenas cumpram um desígnio mágico que os ordene a caminhar, caminhar, por terras e ares, talvez sem nunca chegar.
Pés sustentam. Equilibram-se em saltos agudos, comprimem-se em sapatos fechados. A bota apertada do velho Machado, para ao fim do dia o prazer dos pés descalços. Pés carregam o homem. Mas quanta ingratidão e abandono! Raramente um afago, uma massagem, uma água morna e perfumada. No máximo a higiene natural, como se eles, fortes e calados que são, de nada precisassem, nunca. Muita gente nessa vida é pé: leva a carga em silêncio, como se nem existisse carga, como se nem existisse o carregador.
Pés sofrem. A parte corpórea do signo de Peixes. Sabem do auto-sacrifício, mas que ninguém peça explicações, pois explicação não há. As coisas são o que devem ser. E só. Pés são humildes. Cristo lavando os pés poeirentos dos apóstolos. A mulher pecadora beijando os pés de Cristo e ungindo-os com perfumes, em busca de perdão. Cristo caminhando sobre as águas. Pés salvam o mundo. Os pés de Cristo unidos em sangue por um cravo afiado na cruz. Pés que peregrinam na fé. Caravaggio, Juazeiro do Norte, Santiago da Compostela. Pés estropiados. Pés em êxtase da chegada. Pés de Cristo.
Pés dançam. Baques tribais sobre a terra. Tum-tum, tum-tum. Dedos, artelhos, unhas, garras, garrões. Pés atacam. Coice humano, pés na cara, pés de guerra. Ritos de força: pés sobre brasas, pés incólumes. Pés correm, pés chegam, outros pés nunca alcançam. Pés balançam, pés descansam. Pés no riacho fresco, pés em paz, pés felizes. E de novo pés na estrada. Pés na lama, pés no limo. Pés quebrados, vida parada: a espera nos pés.
Pés fazem arte. Bola nos pés, drible de craque, bola na rede. Pés de moleques nas várzeas. Pés de negros, pés de brancos, chuteiras iguais, sonho em comum: pés fazendo a alegria dos corações. Pés no ar, delírios de valsa. Pés no tango, no samba, no frevo. Pés no balé, nas pontas, nos pontos. A graça nos pés, pés que voam. Pés com asas, Hermes mensageiro, divino Mercúrio a trilhar céus, terras e infernos, unindo mundos, criando pontes. Pés que falam.
Pés fogem. Pés são velozes. Pés miúdos de meninos sem casa, correndo na multidão. Pés de botinas negras, em cerrada perseguição. Pés de pedestres parados, espiando com atenção. Pés que não arredam. Pés que tropeçam, topadas nas pedras. Pés virados, pés inchados. Pés consertados pela bruxa velha. Pés de mandinga, rastro de Saci, trilha enviesada do Curupira. Pés do asfalto, pés da mata. Pés do povo, pés de Deus.
Pés são limites. Corda bamba esticada: pés na vida, pés na morte. Pés que escorregam, pés que levantam, pés que desistem. Pés cansados no parapeito, pés no pulo, pés no vazio, o fim dos pés. Pés que nascem, pés na boca do bebê, o gosto dos pés. Pés de esperança, a caminhada do corpo, a jornada da alma. Pés que vacilam, pés que se atiram. Pés que se ferem, o espinho nos pés, o caco de vidro, as velhas cicatrizes. Pés que amam: o enrosco dos pés, o carinho, o fetiche. Pés que afastam, pés que aproximam. Pés quentes, pés frios. Pés enfermos, pés sadios. Os pés calejados e a única certeza: caminhar de qualquer jeito, caminhar sempre, caminhar com alegria, até a vida dar pé, até findar a estrada e outra jornada começar.

Anos Rebeldes



Estou mergulhado no universo da minissérie Anos Rebeldes, de Gilberto Braga(foto ao lado), apresentada pela Globo em 1992. Além de estar lendo o livro Anos Rebeldes - Os bastidores da criação de uma minissérie, que Braga lançou recentemente e um amigo apressou-se em me dar de presente, também comprei os DVDs da minissérie. O texto é o roteiro completo do programa, com comentários do autor. Fiquei sabendo, por exemplo, que o casal protagonista, João Alfredo (Cássio Gabus Mendes) e Maria Lúcia (Malu Mader), ganhou esses nomes para homenagear os pais do Cazuza (João e Lucinha Araújo, na real João Alfredo e Maria Lúcia), que são grandes amigos de Gilberto Braga. O livro é ótimo para quem escreve roteiros. Gilberto Braga é autor minucioso, sugere tudo, até as trilhas sonoras. Ele lamenta, no livro, que a minissérie de 20 capítulos tenha sido compactada em pouco mais de 11 horas nos DVDs. Tenho feito assim: leio um capítulo do livro, depois vou ver esse trecho no DVD. De fato, há cortes aqui e ali. Em se tratando de um documento, não deviam editar. Afinal, é quase consenso a relação da minissérie com os jovens caras-pintadas do processo de derrubada do Collor. Aliás, mesmo sem pintar a cara (já tinha passado da idade), participei de uma dessas passeatas, em Salvador, com os saudosos colegas de jornalismo da Facom. Como era bom acreditar em alguma coisa...

domingo, 1 de agosto de 2010

Chanson chic

Ainda lembro. Nos créditos finais do filme As Invasões Bárbaras, a voz da francesa Françoise Hardy entoava a graciosa balada L'amitié, um hino à amizade, coroando o tom emocional do filme. O cinema inteiro estava às lágrimas, imagine se eu seria exceção... Saí em busca de algum disco dela, que tivesse essa canção, é claro. Deu trabalho, mas nunca desisti. Escutei hoje minha antologia dessa musa dos anos 60. A canção citada é de 1965. Uma lindeza, como a linda Françoise. Confiram.